Colaboradora/Autora: Lídia Maria Bufolo
Parte 1 – O que contaram sobre a história do Brasil
O que pretendo aqui não é desenvolver um trabalho de campo que investigue e esclareça o que é e como foi a história de formação do nosso país para os brasileiros, falarei, na verdade, do meu ponto de vista e da minha experiência enquanto brasileira, mulher e estudante de escola pública.
Durante minha formação de ensino básico, tive acesso a história mais simplista e genérica possível sobre como se formou e o que se tornou o Brasil. Ainda no ensino fundamental, pintei em um azulejo, no dia em que comemoramos o “descobrimento do Brasil”, três caravelas portuguesas que traziam bravos aventureiros dispostos a transformar essa terra em tudo o que ‘há de melhor’ que o mundo civilizado poderia oferecer.
A canção ‘Pindorama’, lançada nos anos 2000, exemplifica muito bem o que eu fui ensinada a acreditar sobre a história do nosso país. Cantava com orgulho sobre os atores do descobrimento como se todos fossem pequenos heróis que contribuíram pacífica e felizmente para a transformação dessas terras em um quintal de Portugal.
“Vera Cruz, Vera Cruz
Quem achou foi Portugal
Vera Cruz, Vera Cruz
Atrás do Monte Pascoal
Bem ali Cabral viu
Dia 22 de abril
Não só viu, descobriu
Toda a terra do Brasil”
Era como se os bravos portugueses e os inocentes índios vivessem em plena harmonia. O ponto da escravidão foi tocado de maneira mais sutil, a cidade em que nasci, Itatiba, orgulhava-se por ser a primeira cidade a abolir a escravidão, mas não me lembro de ouvir os méritos dos agentes que realmente lutaram pela abolição, ou seja, os negros.
Uma rua da cidade leva o nome de 29 de abril, dia da promulgação da Lei Áurea. No museu da cidade, um prédio histórico de algum ex-Senhor de escravos, o porão era reservado para expor os utensílios que eram usados para torturar os negros. Essa imagem sem dúvida chocava as crianças, mas não era o suficiente para pôr em debate questões como: por que era aceitável na escola que existisse brincadeiras sobre o cabelo das crianças afrodescendentes, por que todas as professoras eram brancas e a única funcionária negra era a que servia a merenda, por que existe tanta desigualdade racial no país? Um pequeno detalhe: cursei o ensino fundamental entre os anos 2001 e 2007, anos em que já era obrigatório, pela Lei 10.639, o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas.
Já na faculdade, cursando Ciências Econômicas, curso que escolhi pelo interesse em assuntos políticos e históricos, pude me reencontrar com os bravos e aventureiros colonizadores, dessa vez, quem os descrevia eram grandes teóricos da história da formação do Brasil. A história seguia sendo contada pelo mesmo lado, o lado ‘vencedor’, apesar de escrita por brasileiros, poucos são os casos de nomes influentes que vieram da parcela menos privilegiada na população, ou seja, mulheres, negras, que não tiveram na época acesso ao mundo acadêmico.
A nova versão da história que conheci na universidade parecia muito mais profunda e complexa, trazia conceitos mais rebuscados como ‘mimetismo cultural’ ou ‘patrimonialismo’ e havia a tentativa de explicar a partir da colonização, as origens dos problemas sociais vividos pelos brasileiros. Reconheci em Celso Furtado, por exemplo, inquietações com as quais me identifiquei, apesar de vindo de família relativamente rica, dona de terras, o autor veio do Nordeste, e uma das suas maiores questões era: Por que o Brasil é um país tão atrasado se possui tantas riquezas? Por que existe tanta desigualdade social? Para responder essas questões, o autor tocava em um outro conceito que me parece chave para entender o Brasil: o privilégio. Para Furtado, uma das primeiras condições para vencer a posição de atraso em que se encontra o Brasil, seria escapar da obsessão das nossas elites de reproduzir o perfil daqueles que se auto intitulam ‘desenvolvidos’, para isso, o autor deu o nome de ‘mimetismo cultural’.
Segundo Furtado, a miséria não se justifica simplesmente pelo baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas de países da periferia do desenvolvimento. A pobreza tem origem no controle do excedente social por elites ‘aculturadas’ que sempre quiseram imitar o modelo de vida das economias centrais. A má distribuição de riqueza deveria ser combatida enfrentando os privilégios, que fazem com que a concentração de renda seja uma condição estrutural do padrão de consumo das elites.
Já em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, encontrei um tipo de explicação da nossa sociedade que me convenceu de imediato. Nesse livro, o autor cria a metáfora do ‘homem cordial’ e, até hoje, não existe consenso na academia sobre o que exatamente ele quis dizer com ela. Mas que sem dúvida, tem um poder de convencimento muito grande. Neste livro o autor tenta mostrar as diferenças entre os portugueses e espanhóis, descreve os primeiros como ‘mais aventureiros e relaxados’ em comparação aos espanhóis, mais ‘centrados e racionais’. O pioneirismo nas navegações teria vindo daí. A diferença entre esses dois tipos de homens estaria em um ter um olhar mais aventureiro e o outro mais ‘esforçado’, voltado para o trabalho duro de mais longo prazo. Portanto, o português vinha para a América para adquirir riqueza sem ter muito trabalho, o que podemos chamar de extrativismo ou de um tipo de assalto às riquezas e cultura da população que aqui viviam antes.
É no capítulo em que o autor descreve o “Semeador e o Ladrilhador” que podemos começar a notar duas noções morais colocadas em contraposição. As colônias espanholas tiveram cidades construídas de maneira planejada, pensadas a longo prazo, a cidade era pensada como empresa da razão, normalmente erguidas no centro das regiões. Diferente das cidades brasileiras, que eram desorganizadas e ‘norteadas por uma política de feitoria’, os portugueses, portanto, foram, segundo o autor ‘semeadores de cidades irregulares’ nascidas e crescidas aleatoriamente. A partir daí é dado o salto para a metáfora do do homem cordial.
Para Buarque de Holanda, as relações familiares, da família patriarcal, rural e colonial, não contribuiu para a formação de homens responsáveis e guiados pela razão. É nessa caracterização de homem emocional que, como critica mais contemporaneamente Jessé de Souza, podemos identificar o tom pejorativo que o autor dá às morais vigentes entre os brasileiros e o quanto o autor se encaixou no discurso eurocentrista ensinado pelos colonizadores. Afinal, Emoção é antagônico a Razão e a palavra ‘emoção’ caminha junto com um grupo de adjetivos que durante toda a colonização, tanto aquela dos anos 1500, quanto a que vivemos ainda hoje na globalização, trazem um tom negativo para a caracterização dos que estão do lado periférico do centro de poder hegemônico no mundo.
Essas caracterizações reforçam, no âmbito cultural, o poder do colonizador sobre o colonizado, do opressor sobre o oprimido, do moderno versus o arcaico, do civilizado em oposição ao selvagem, sob a ótica do eurocentrismo que universaliza o que é bom em contraposição ao que é ruim, que traz um modelo a ser seguido, um objetivo de nação a ser alcançado. Foi com esse último autor que pude compreender porque fui tão convencida pela linha argumentativa de Buarque de Holanda. Sua descrição sobre os brasileiros caminha junto com o senso comum, vai mais no sentido de uma descrição do que vemos no dia a dia do que de uma crítica do que está enraizado na nossa cultura. Foi muito fácil reconhecer no ‘jeitinho brasileiro’ diversas atitudes ‘corruptas’ que vivenciei durante a vida. Acreditei, a princípio, na interpretação de que o brasileiro tem ‘um jeitinho’ único de burlar pequenas regras, de ser cordial para conseguir pequenas vantagens e que leva os laços familiares para as esferas públicas.
O problema, como destaca Jessé, é que essa teoria não explica, mas reforça estereótipos do brasileiro, reforça porque ela é dita cientificamente por grandes nomes da Teoria da História do Brasil, tanto na esquerda, como na direita, como Rodrigo Faoro, Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta e é, ainda hoje, uma leitura dominante no país e exerce influência entre os intelectuais, sendo reproduzida fora da academia pela mídia ajudando a compor o pensamento cultural do brasileiro. Jessé traz um novo termo: ‘a ralé’ brasileira. Como explica o autor, esse termo não é economissista, ele foge do conceito de ‘classe social’, porque para ele, essa nova forma de ‘separar os grupos sociais’ não tem relação unicamente com a faixa de renda, pois separar por classe social esconderia muito mais do que mostraria informações sobre quem é o brasileiro.
O autor pensa um grupo social a partir da sociabilização familiar dele, isso é fundamental porque separa aqueles que nascem com ou sem privilégio. É claro que o privilégio está diretamente relacionado com poder de renda, mas vai muito mais além disso. O privilégio se relaciona com pais que podem ‘comprar o tempo de seus filhos’ para que eles se dediquem unicamente aos estudos, mas mais que isso, o privilégio se relaciona com o ensinamento que é passado das famílias para os filhos sobre ser confiante, sobre ter concentração, autocontrole, organização, foco em metas futuras e etc. O conjunto de todas essas condições geram indivíduos que se dedicaram a vida toda unicamente aos estudos, que aprenderam outra língua e acumularam capital cultural, capazes de entrar nas melhores universidades e, por fim, terminar em grandes cargos de grandes empresas.
Em contrapartida, o baixo capital cultural que tem as populações menos privilegiadas gera o extremo da exploração do trabalho corporal, os trabalhos domésticos e mais precários além de remunerar mal, carregam uma cultura de pouco valor que resulta em humilhação daqueles que os fazem. Esse trabalho corporal que é feito para os mais privilegiados, é o que lhes dá tempo de sobra para se dedicar ao acúmulo de capital cultural.
Não tenho pretensão e tão pouco embasamento teórico suficiente para criticar a linha de teóricos da Formação Econômica do Brasil que se ensinam nas universidades. Mas não posso negar que sinto um incômodo quanto ao fato de, segundo Jessé, não haver “uma forte crítica das ideias dominantes”, que vem deixando seus traços desde a colonização. Além de o objeto de estudo – a sociedade brasileira – parecer tão distante e tão sem voz.
No trabalho de Gayatri Chakravorty Spivak, a escritora indiana que estudamos na disciplina, vemos a crítica da fraca voz que tem o subalterno na participação da formação das teorias que falam sobre eles. Em ‘Pode o subalterno falar?’, é revelado como que se dá a construção das camadas mais baixas da sociedade via “modos específicos de exclusão nos mercados, na representação política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.”
Entendo que a crítica, vem no mesmo sentido que teóricos da pesquisa ação-participativa, criada por Orlando Fals Borda, que foi um dos criadores da ciência ‘rebelde e participativa’, que se “opõe abertamente ao colonialismo intelectual fixados pelas regras do jogo científico internacional”, ou seja, ele questiona o desenvolvimento do conhecimento a base de imitação e importação de paradigmas promovidos nos meios de divulgação científicas dominantes. O autor defende que se busque ativamente a mobilização de estratégias de modificação das ciências sociais como são ensinadas hoje.
É a partir dessa breve reflexão que exponho a segunda parte desse trabalho que traz algumas imagens coletadas entre os anos de 2014 até hoje, dos atores menos privilegiados da sociedade. Não acredito que posso através desse pequeno acervo fotográfico literalmente dar voz a esses atores – ainda que eu entenda que fotografias possam sim “falar’’ de alguma forma – mas faço a tentativa de pelo menos registrar brevemente alguns rostos anônimos de brasileiros que encontrei nesses anos.
Parte 2 – Ensaio sobre os brasileiros
Raí contou que tem 11 anos e 13 irmãos. O que mais me chamou a atenção foi que, apesar da pouca idade, contou em um tom muito adulto, como se fosse natural para uma criança, sobre a sua profissão: que ele era ‘guia e fotógrafo’ naquela cidade, Baía Formosa – RN.
Baía Formosa tem pouco menos de nove mil habitantes, assim como a maioria das cidades turísticas do Brasil, apresenta forte contraste na condição de vida dos moradores em relação aos turistas.
No trajeto para chegar à cidade de Canguaretama a paisagem é dos grandes latifúndios de cana-de-açúcar. A Cana, foi uma das primeiras economias que o estado conheceu com a chegada dos colonizadores, ainda hoje é um forte componente econômico na região, juntamente com o turismo. O latifúndio extrativista é um dos traços mais marcantes de economias ditas atrasadas com altos índices de desigualdade social.
Homem observando o movimento dos turistas e dos pescadores.
A Barra de Cunhaú localiza-se no município de Canguaretama, no estado do Rio Grande do Norte. Fica a cerca de 90 quilômetros de Natal, capital do estado.
As Caixeiras das Nascentes é um grupo popular de percussão formado por mulheres, que trata a música como forma de partilha e celebração. O objetivo do grupo é fazer uma releitura das manifestações populares a partir da “memória das integrantes, da prática, aperfeiçoamento e difusão da arte das Caixas do Divino (tambor pequeno, originário da Festa do Divino do Maranhão), assim como pesquisas de cantos e toques do Sagrado Feminino (Festa do Divino, Congadas, Moçambique, Ladainhas, Afoxés entre outras), além de propiciar espaços para vivência coletiva e trocas dos saberes.
Anônimo, morador da cidade de São Luiz do Paraitinga, me contou quando nos encontramos na rua, aproximadamente às seis horas da manhã quando as casas e comércios ainda não estavam abertas: “Acordei às quatro horas da manhã, já fui buscar leite, já aprontei bastante (…) Gente velha não pode parar, se não morre”.
O número de ambulantes que vemos dividindo as ruas com os engravatados, em Brasília, me lembraram a música Comida Forte, do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira: “Infinito aberto ao infinito/Se esconde um ponto onde pode estar Deus/Único ponto do sol, grita com seus raios/E lá no cerrado, jenipapo pega fogo/A estrela sol brilha e faz vida aqui na terra/Oi ia ia/Candango come comida forte/Pra construir a capital, Brasília/Candango come comida forte/Pra construir a Capital”.
Fui convidada em março de 2017 a fotografar um teatro ao ar livre, no centro de Campinas, do grupo de teatro Trupe Alumiada de Sucesso, formado por alunos da UNICAMP. A história da peça era sobre Maria Bonita e Lampião. Os atores interagiam muito com os telespectadores, estes então, ajudavam a contar a história e davam participações espontâneas. Alguns homens que estavam no local se identificaram muito com o personagem Lampião, um deles contou, imitando a voz do ex-presidente Lula que “também veio de lá”.
Em Goianinha, ainda é tradição que os moradores rurais utilizem as lavanderias públicas e o leito dos rios para lavar suas roupas.
Em Baependi, muitos moradores vivem da agricultura familiar e do artesanato religioso.
São Jorge é uma vila de Alto Paraiso – GO, localizado dentro da Chapada dos Veadeiros, local de preservação ambiental. A vila tem cerca de 300 habitantes que vivem do turismo local.
Morretes é uma cidade litorânea no Paraná, com cerca de 16 mil habitantes, movida pelo turismo resultante da preservação dos casarões da época da colonização e descoberta do ouro. As duas fotos foram tiradas do mesmo local, uma do lado direito e uma do lado esquerdo da rua. Uma delas retrata uma criança vestida com uma estampa de um personagem infantil norte-americano e na outra, um morador de rua. Retratando mais uma vez a ambiguidade socioeconômica das cidades turísticas do Brasil.
Morador da cidade que se sustenta na informalidade tocando violão e vendendo seus discos no centro turístico de Curitiba.
*Trabalho final realizado para a disciplina “GF402 – História Econômica , Política Social do Brasil ”, ministrada pela Profa. Dra. Márcia Maria Tait Lima/PED Iraima Lugo, oferecida no Instituto de Geociências da Unicamp durante segundo semestre de 2018.