Publicado em Brasil Debate.
Texto: Márcia Tait
“A única possibilidade que nós temos, não só de recuperar os recursos naturais, mas de ligar isso com uma vida melhor e mais livre, é tomar consciência de que os direitos da natureza e os direitos humanos são dois nomes da mesma dignidade.” (Eduardo Galeano, 1940-2015)
Há cerca de cinco anos tenho dedicado parte do meu tempo a observar e pensar sobre as ações coletivas de mulheres camponesas na América Latina. Entre outros motivos, porque esta tarefa era indispensável para o desenvolvimento do meu doutorado, cujo tema foi “mulheres em ações coletivas de resistência aos cultivos transgênicos no Brasil e Argentina”.
Em minha pesquisa, busquei trabalhar com as potências da ação coletiva de mulheres camponesas para estabelecimento de “novas” propostas éticas, epistemológicas e políticas. “Novas” porque colocam em evidência não apenas dimensões socioeconômicas, mas também o patriarcado, o sexismo e as formas predatórias e utilitaristas de relação com o meio ambiente.
Visibilidade e protagonismo
Nos últimos 15 anos, o protagonismo das mulheres camponesas tem se ampliado, como se nota em pesquisas de campo, na internet e na leitura de trabalhos científicos. Baseia-se ainda no reconhecimento de organismos internacionais, como a FAO e Via Campesina, do papel central das mulheres na produção de alimentos e na luta pela soberania e segurança alimentar. Estas entidades estão ajudando a dar visibilidade ao “universo invisível das mulheres agricultoras” latino-americanas.
As pesquisas sobre mulheres agricultoras e rurais também têm contribuído para esta visibilidade e construção das lutas camponesas: Maria Ignez Paulilo, Emma Siliprandi e Cecília Sardenberg, em seus trabalhos, discutem o crescente empoderamento das mulheres rurais/agricultoras/camponesas e sua importância como novos sujeitos políticos para as lutas e políticas voltadas a agricultura. Também reforçam a argumentação sobre a importância das mulheres no próprio trabalho e produção de alimentos.
Este “feminismo campesino e popular” encontra-se fortalecido no Brasil por movimentos como Movimentos de Mulheres Camponesas (MMC) e Movimentos de Mulheres Agricultoras (MMA) ou ainda, em âmbito sul-americano e continental, organizações como a Asamblea Continental de Mujeres del Campo (integrando a CLOC/Via Campesina), a Unión Latinoamericana de Mujeres (ULAM) e Organización de Mujeres Campesinas e Indígenas (CONAMURI).
Pela libertação das mulheres e sustentabilidade da vida
A ecofeminista indiana Vandana Shiva definiu o “mau desenvolvimento” como um conjunto de processos de violação da integridade de sistemas orgânicos interconectados que gera exploração, desigualdade e violência, principalmente contra as mulheres do Sul.
O ideal de modernidade, a lógica do conhecimento científico (conduzido por procedimentos reducionistas) e as tecnologias decorrentes destas lógicas seriam uma parte importante dos mecanismos de produção de violência contra o meio ambiente, os humanos, as mulheres e a própria integridade da vida.
Assim, mulheres que se autodenominam camponesas e/ou indígenas se destacam em mobilizações e organizações de resistência a vários empreendimentos econômicos privados ou governamentais que incidem de forma especialmente negativa sobre as mesmas, trazendo degradação do meio ambiente, exclusão social e a violência.
“Ao dizerem não à mercantilização da natureza e da vida; ao afirmarem a indissociabilidade entre a desigualdade socioeconômica, de gênero e raça, estas mulheres constroem novas concepções que rompem com as propostas dos grupos que têm determinado o nosso futuro até agora”.
As denúncias dos impactos deste mau desenvolvimento podem ser vistas em ações coletivas em toda América Latina. Como na declaração de Melissa Wong Oviedo, que apoia camponesas peruanas contra o projeto de mineração Conga, administrado pela Minera Yanaconcha S.A. ,de abril deste ano: “Na América Latina é crescente a violência psicológica, física e ambiental contra as mulheres indígenas, rurais e afrodescendentes por parte das indústrias extrativistas. São expulsas de seus territórios, são vítimas de tráfico e abusadas sexualmente. A indústria extrativista lhes afeta mais que aos homens, porque se veem obrigadas a buscar novas fontes de água, porque são elas que garantem a segurança e soberania alimentar de suas famílias e perdem seus trabalhos ao ver suas terras improdutivas”.
No Brasil, movimentos camponeses vêm denunciando em suas mobilizações os impactos negativos dos monocultivos transgênicos para os agricultores/as camponeses/as, principalmente, no que diz respeito a sua perda de autonomia, aceleração do processo de concentração de terra e aumento do uso de agrotóxicos.
Em abril deste ano, cerca de mil mulheres ocuparam a empresa FuturaGene Brasil Tecnologia Ltda da Suzano Papel e Celulose. Essa ação, que fez parte da Jornada Nacional de Luta das Mulheres Camponesas, pretendia denunciar a possível liberação de eucalipto transgênico (H421) pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
A votação da liberação foi adiada devido à pressão destas e outras mobilizações, mas a variedade de eucalipto transgênica acabou sendo aprovada algumas semanas depois.
Mercantilização e ameaças à ‘sustentabilidade da vida’
Muitos projetos atuais de extrativismo, mineração, geração de energia e agricultura industrial, promovidos por governos e por empresas, representam ações contra comunidades e seus territórios e são entendidas pelas mulheres camponesas como ameaças à “sustentabilidade da vida” (noção usada pelas feministas Cristina Carrasco e Amaia Orozco para sublinhar a necessidade de colocar a reprodução da vida – e não do capital – como centro de nossa sociedade e de nosso sistema produtivo e econômico) em seus níveis mais fundamentais.
Esta inversão de perspectiva parece fundamental para construir saídas para a encruzilhada na qual nos colocaram modelos teóricos e políticas desenvolvimentistas e economicistas que nos trouxeram até aqui.
Esse fundamento ético-político pode ajudar a pensar e agir sobre “as crises” contemporâneas e a reconhecer, como nos diz Amaia Orozco, “os múltiplos e gravíssimos ataques aos processos vitais e as diferenças estruturais de um sistema predatório” (…) uma “crise civilizatória que atravessa todas as estruturas (políticas, sociais, econômicas, culturais, nacionais) e que afeta as construções éticas e epistemológicas mais básicas gerando uma crise de sentido em torno da própria compreensão da nossa vida”.
Assim, ao dizerem não “à mercantilização da natureza e da vida”; ao afirmarem a indissociabilidade entre as dimensões da desigualdade socioeconômica, gênero, raça; ao afirmarem a sustentabilidade da vida como centro de nosso sistema produtivo e econômico, estas mulheres estão construindo novas concepções éticas e para ação política que rompem com as propostas dos grupos que têm tido o poder de determinar nosso futuro até agora.
Por isto mesmo, podem nos levar a um novo jeito de fazer política, de tomar decisões: que mostrem saídas à encruzilhada em que nos encontramos como civilização. Resta saber: as escutaremos?
Veja mais sobre este tema na Sementeia, vídeo produzido para Movimentos de Mulheres Camponesas, regional de Santa Catarina – Mulheres da Terra e sobre as Mulheres do Assentamento Vergel.
Sobre a tese de doutorado defendida na UNICAMP – Elas dizem não!
Entrevista veiculada na RTV Unicamp.
Vídeo do Seminário “Camponesas, feminismos e lutas atuais: Resistência e potência na construção de epistemologias do Sul”, apresentado no Instituto de Estudos Avançados da USP.