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Maneiras diferentes de encarar as relações de consumo, atenção com os produtos que são ingeridos e com a qualidade de vida formam uma tendência que vem se fortalecendo no distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP). Estabelecimentos comerciais com essa pegada são comuns na região, que conta com uma diversidade de opções de restaurantes com essas características e casas de produtos naturais, além de, por exemplo, uma feira semanal de produtos orgânicos e um grupo de compras coletivas. No entanto, mais do que uma preocupação com o benefício individual, o que se coloca em evidência é um questionamento do tipo de sociedade que se quer.
O coletivo Trocas Verdes é uma iniciativa criada em 2007, por um grupo de estudantes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), com a proposta de facilitar a compra de produtos orgânicos por meio da aproximação entre compradores e produtores. O contato direto do consumidor com o fornecedor é dos aspectos considerados essenciais no Trocas Verdes, que, através dessa relação, visa o incentivo de uma forma diferenciada de consumo.
Uma vez por semana, atualmente às terças-feiras, produtores expõem seus produtos e as pessoas fazem a compra daquilo que elas pediram, com antecedência, pela internet. A retirada dos produtos é feita diretamente com cada produtor justamente para facilitar a interação. Conhecer a pessoa que produz, conversar sobre os produtos, trocar informações, receitas, tirar dúvidas, na proposta do Trocas Verdes, promove uma forma de consumo mais consciente, indo além de simplesmente comprar algo.
Desenvolvimento local
Outra característica é a necessidade de, antes de fazer parte do grupo de compradores, passar por uma reunião de acolhida, na qual se apresenta a ideia do coletivo, a proposta, o funcionamento e critérios para a participação de produtores, entre outros tópicos. Essas reuniões são mensais e ocorrem no mesmo espaço onde se concretiza a compra, na capelinha da Cidade Universitária, perto da Unicamp.
O grupo se apresenta como uma cooperativa de compras, que facilita o consumo de alimentos orgânicos, resultantes da atividade de agricultura familiar, de assentamentos e de pequenos produtores, com a preocupação de apoiar o desenvolvimento local e, assim, buscar a descentralização econômica, organizando uma alternativa de consumo que questiona o monopólio dos supermercados e dos grandes produtores de alimentos.
Saudável
Os produtores que participam do Trocas Verdes são selecionados por uma série de critérios, como possuir a certificação de orgânicos. Há produtores que não possuem essa certificação e nesses casos, gestores do coletivo visitam as propriedades que demonstram interesse em fornecer produtos para verificar os procedimentos adotados e se se encaixam na proposta do Trocas, como por exemplo, no que se refere a não utilização de agrotóxicos e sementes transgênicas. A análise envolve manejo agrícola, condições de trabalho e da propriedade (entre os itens estão: se participa de movimentos sociais, se se insere nos princípios da agroecologia e conhecimento livre, entre outros), além da questão do transporte.
Além de legumes, verduras, frutas, mudas de plantas e ervas, no Trocas é possível encontrar grãos, laticínios, pães e até produtos de higiene, como sabonetes e desodorantes, artesanais e naturais. Não é aceito nenhum tipo de carne e nenhum produto que contenha corantes, por exemplo. Conforme consta no blog do coletivo, o Trocas Verdes segue “os princípios da economia solidária, da autogestão, da soberania alimentar, e preocupado com o sabor dos alimentos, assim como com a saúde do corpo e do planeta”.
Solidariedade
Paul Singer, no livro “Introdução à Economia Solidária”, explica que o capitalismo é essencialmente competitivo e essa competição é que gera as desigualdades na sociedade. De acordo com ele, essa desigualdade só pode ser eliminada com a substituição de uma economia pautada pela competição por uma solidária. “Isso significa que os participantes na atividade econômica deveriam cooperar entre si ao invés de competir”, conforme afirma no livro.
Ele analisa ao longo do texto que a economia solidária, “mais do que ser uma mera resposta à incapacidade do capitalismo de integrar em sua economia todos os membros da sociedade desejosos e necessitados de trabalhar”, se apresenta como uma alternativa superior, no sentido de proporcionar uma vida melhor. “Vida melhor não apenas no sentido de que possam consumir mais com menor dispêndio de esforço produtivo, mas também melhor no relacionamento com familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, colegas de estudo, etc”.
Comunidade
Em decorrência dessa proposta mais ampla, os produtores fornecedores do Trocas Verdes também devem estar alinhados com esses princípios. Como é o caso da comunidade Santa Rosa, da horta comunitária do Parque Itajaí (Campinas). De acordo com o casal Maria Valdivina, a Diva, e João Novais, produtores da comunidade, há cerca de cinco anos a horta é parceira do coletivo.
Segundo Novais, que também é presidente da Cio da Terra – Associação de Produtores da Agricultura Urbana e Periurbana de Campinas e Região (Aproagriup), em torno de 12 famílias trabalham na horta, que não usa nenhum tipo de agrotóxico. “Hoje temos muito incentivo para trabalhar sem o uso de veneno”, afirma ele, lembrando que cresceu vivendo uma situação totalmente inversa. “Meu pai era lavrador, no Paraná, e no pacotão que vinha com o financiamento, tinha que usar agrotóxico”.
Imagem: Banner de divulgação do Mapa das feiras orgânicas -http://feirasorganicas.idec.org.br/
Orgânicos
Diva conta que participaram de vários cursos para trabalhar a terra sem o uso dos venenos. “Pode ser mais lento e até ser mais trabalhoso, mas é muito gostoso trabalhar dessa forma. Respeitar os tempos. Tem época que não dá de tudo e trabalhamos ao ar livre. Lá não tem sombrite, não tem estufa. Mas, vale a pena”, garante. Ela ressalta que a horta ganhou um prêmio pelo trabalho desenvolvido. Foi um prêmio de responsabilidade ambiental, em 2009. Além da parceria com o Trocas Verdes, a horta também fornece produtos para o restaurante Raízes Zen, localizado no centro de Barão Geraldo, que oferece comida lacto-vegetariana e vegana. Também é possível comprar os produtos na própria horta.
Luciana de Almeida é uma das consumidoras que participa do coletivo. Segundo conta, há dois anos começou a frequentar a feira do Trocas Verdes, que ela conheceu por meio de amigos. Entre as motivações que ela destaca estão o contato próximo com produtores e a qualidade dos produtos. “Saber de onde vêm os alimentos que a gente consome”, aponta Luciana como um aspecto importante da escolha que fez, mesmo que represente pagar um pouco mais pelos produtos, em relação ao que se encontra em supermercados em geral. No entanto, a primeira preocupação dela ao buscar o Trocas foi a questão do consumo de alimentos orgânicos.
Veneno pra todo lado
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Segundo reportagem publicada pelo jornal El País/Brasil, em abril de 2015, o uso de venenos atingia 70% dos alimentos, sendo que mais da metade das substâncias utilizadas tinha uso proibido nos Estados Unidos e em países europeus. A situação não mudou de lá para cá. Um ano depois, no mesmo veículo de comunicação, foi publicada matéria com o título “Agrotóxicos: o veneno que o Brasil ainda te incentiva a consumir”, com a linha fina “Brasil permite uso de pesticidas proibidos em outros países e exonera os impostos dessas substâncias”.
O forte lobby da indústria química que está por trás do intenso uso de agrotóxicos e de outros produtos químicos na cadeia alimentar em todo o mundo foi pesquisado pela jornalista francesa Marie Monique Robin e o trabalho transformado em um importante documentário, “Nosso veneno cotidiano” (Notre poison quotidien), lançado em 2011. Partindo da relação entre doenças de agricultores e o uso de agrotóxicos, a pesquisa avança no sentido de verificar se os resíduos dessas substâncias também podem intoxicar consumidores, inclusive pela combinação de efeitos das mais variadas substâncias.
Patentes
Nesse ponto, a jornalista também questiona os efeitos de outros produtos químicos utilizados em toda a cadeia alimentar, como em embalagens e alimentos industrializados, a presença de corantes, de adoçantes e de tantas outros. Entre as constatações que deixam grande inquietação e preocupação estão as evidências de que os sistemas de avaliação e certificação de produtos que podem estar presentes nos alimentos não possuem estudos em quantidade suficiente e nos prazos compatíveis para acompanhar a quantidade de produtos existentes e os novos que são lançados constantemente.
Sem dizer que parte significativa dos estudos, que vão embasar esse sistema, de acordo com o documentário, é financiada ou oriunda das próprias indústrias, e são elas, portanto, as detentoras desses estudos, por meio do direito da patente. O que significa que dados originados por esses estudos estão fechados, ou seja, inacessíveis à sociedade ou que, publicizados, podem perfeitamente estar “maquiados” Como exemplo, a jornalista cita o caso da indústria do tabaco que, inicialmente negava qualquer relação entre o consumo de tabaco e doenças, sendo que posteriormente se tornou público que essas indústrias já detinham dados dessa relação e Robin questiona se uma situação semelhante não pode estar acontecendo em relação ao aspartame.
Transparência
A transparência de dados é essencial para a sociedade poder fazer escolhas. No início de julho, a pesquisadora Larissa Mies Bombardi, professora de Geografia Agrária na USP (Universidade de São Paulo), divulgou dados de intoxicação no Brasil por agrotóxicos, dando visibilidade a um problema grave. O trabalho é apresentado em mapas e a pesquisadora chama a atenção para o fato de que, se o resultado por si só já é alarmante, a situação real é pior, tendo em vista o problema da subnotificação dos casos.
Pelo levantamento, no país foram registrados 25 mil casos de intoxicação por agrotóxicos, entre 2007 e 2014, pelas mais variadas formas, inclusive pela via da alimentação. No entanto, a professora estima, com base na questão da subnotificação, que esse total deva ser multiplicado por 50, chegando assim a um total de mais de um milhão de casos.
Para que outros dados como esses possam se tornar públicos, um grupo de comunicadores se uniu para viabilizar o projeto De Olho nos Ruralistas e correu atrás de financiamento por meio de crowdfunding. O projeto consiste em um observatório do agronegócio no país que vai discutir questões como desmatamento, agrotóxicos, direitos dos povos indígenas, grilagem de terra, interferências no cenário político nacional, camponeses, entre outras que não estão na pauta da chamada imprensa comercial.
Questionamento do modelo
Iniciativas como essa mostram a necessidade de questionamento do modelo que se caracteriza pela opressão, alta concentração de renda, relações desiguais na sociedade, exploração intensa do meio ambiente, inclusive da vida humana. Exploração exacerbada da natureza, sob a perspectiva de que é uma fonte de recursos à disposição do ser humano.
Esse sistema, como chama a atenção Maria Castellano, do Como? Espaço Vegano, põe em risco a vida e está à beira do colapso. Conforme analisa, o capitalismo funciona sob a lógica de concentração de renda, nas mãos de poucos, graças à exploração do trabalho, da vida e do sofrimento de muitas vidas. “Está muito claro que o planeta está colapsando”. Para ela, a busca por melhor qualidade de vida, incluindo nisso a preocupação com o meio ambiente, com todas as formas de vida, pode ser entendida como uma reação à violência que se está vivendo nesse sistema.
Acesso às informações
Maria entende que essas iniciativas podem ser entendidas como uma forma de resistência. “Acho que sim, que é um movimento e que em Barão Geraldo pode estar um pouco mais acentuado”, acredita e aponta que essa intensidade pode ter relação com a concentração de pessoas ligadas à universidade. Conforme exemplifica, as pessoas ligadas ao veganismo, geralmente, são pessoas que buscam muita informação e se mostram muito críticas ao sistema e às condições de vida.
Matheus Chalita Prado, da loja de produtos naturais NaturalMente, tem um posicionamento semelhante, no entanto ressalta ainda que esse maior fluxo em busca de uma qualidade de vida que ele percebe no distrito se dá, também, pela presença de muitos pesquisadores de outros países, ligados à Unicamp. “Para a gente, ainda é uma questão alternativa. Mas em muitos países, como da Europa e nos Estados Unidos, o consumo de produtos naturais é grande. Faz parte do hábito. Ecomercados são comuns”, comenta e acrescenta que essas pessoas acabam por ser divulgadoras. “Ajudam a dar uma aquecida”, reforça.
Instalado recentemente na Praça do Coco, na região central de Barão Geraldo, o estabelecimento começou a funcionar há seis anos (inicialmente na Estrada da Rhodia). A mudança para o novo local foi intencional e motivada pela característica que o entorno vem conquistando, com vários estabelecimentos que se encaixam nessa proposta, além da feira de artesanato aos sábados, e a de produtos orgânicos, às terças-feiras.
Adepto de uma alimentação saudável, Prado também é professor de meditação e comenta que o empreendimento resultou da junção do “útil ao agradável”. A motivação principal, conforme afirma, não é capitalista. Tanto que, segundo ressalta, a relação que se estabelece no local é diferenciada, com atendimento mais próximo e personalizado, com esclarecimento de dúvidas e auxílio em relação, por exemplo, às informações contidas nos rótulos. “Se tem uma pessoa com intolerância ao leite é preciso verificar ao certo o tipo de intolerância, porque o leite tem três componentes”, exemplifica. “A nossa proposta é levar qualidade de vida e beneficiar as pessoas. Claro que tem o lado de ser um empreendimento para me sustentar, mas a maior motivação é a questão da saúde”.
Veganismo
O Como? está instalado na mesma região, na continuação da Praça do Coco (esse também é o segundo endereço do estabelecimento, que foi instalado, inicialmente, no bairro Guará). Além de restaurante, abriga uma loja que comercializa produtos veganos (não só alimentícios), tem um espaço de biblioteca com títulos relacionados ao veganismo e funciona como um espaço cultural, com exposições e realização de eventos. De acordo com Maria, já foram realizados eventos para debater, por exemplo, anarquismo e veganismo, veganismo e feminismo.
Conforme explica, o espaço foi criado, inicialmente, como forma de atender à demanda das pessoas que seguem uma dieta vegana, inclusive a dela e da família, e tem também uma proposta educativa, segundo ressalta, de divulgar essa proposta de vida e mostrar que é possível comer, e comer bem, consumindo produtos que não sejam de origem animal.
Maria faz questão de destacar que o veganismo não tem, necessariamente, relação direta com alimentação saudável. De acordo com ela, é possível ser vegano e não ser saudável, seguindo uma dieta, por exemplo, rica em farinha branca e açúcar refinado. A tendência, sim, acrescenta, é que seja saudável.
Ideologia
A questão do veganismo supera o aspecto alimentar. Por isso, Maria defende que se trata de um estilo de vida, uma ideologia. Não consumir nada que tenha origem animal, inclusive vestimentas. A base é o respeito a todas as formas de vida, humana e não humana. “Faz parte da ideologia da não violência, da não opressão. Não é só não comer carne ou laticínios, que envolvem a exploração direta da vaca, do porco e tal. Mas, de também tentar eliminar, na medida do possível as outras mazelas da cadeia produtiva”, resume.
Maria questiona o fato de a humanidade, em geral, não se incomodar com a violência e as condições de vida a que são submetidos os animais, criados unicamente para o abastecimento do mercado. “São 75 bilhões de animais que vivem em condição de miséria”. Para ela, o veganismo surge para denunciar essa situação e buscar maior qualidade de vida, incentivando, inclusive, a criação de redes para “descentralizar as relações econômicas e, ao invés de todo o dinheiro afunilar sempre para os mesmos, formar pequenas redes”, comenta, sobre a preferência em ter parceiros e pequenos fornecedores locais.
Como defende a pensadora ecofeminista Yayo Herrero, somos ecodependentes e interdependentes. Sobre a interdependência, ela se refere ao cuidado com a vida e aqui se pode extrapolar essa noção com o cuidado com as interrelações que se criam e se fortalecem como forma de resistência e, porque não, cuidado com todas as formas de vida, em prol de uma qualidade de vida.
Diferentes iniciativas dão cara a um movimento em busca de qualidade de vida em Barão Geraldo
Autora: Véronique Hourcade
Matéria produzida como trabalho de conclusão da disciplina JC 003 – Tópicos Atuais em Ciência e Cultura, no âmbito do programa de pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/Unicamp, ministrada pela Profª Drª Márcia M. Tait Lima, no 1º semestre de 2016.
Mais sobre o tema:
Coletivo Trocas Verdes – http://www.trocasverdes.org/blog/
Cio da Terra – http://aproagriup.blogspot.com.br/
O “alarmante” uso de agrotóxicos no Brasil atinge 70% dos alimentos (El País) – http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/29/politica/1430321822_851653.html
Agrotóxicos: o veneno que o Brasil ainda te incentiva a consumir (El País) – http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/03/politica/1457029491_740118.html
Documentário Notre Poison Quotidien – http://docverdade.blogspot.com.br/2012/12/o-veneno-nosso-de-cada-dia-notre-poison.html
Pesquisadora da USP monta mapa da contaminação por agrotóxico no Brasil (Carta Campinas) – http://cartacampinas.com.br/2016/07/pesquisadora-da-usp-monta-mapa-da-contaminacao-por-agrotoxico-no-brasil/
Projeto De Olho nos Ruralistas – – http://www.outraspalavras.net/outrosquinhentos/projects/de-olho-nos-ruralistas/
Introdução à Economia Solidária – Paul Singer – Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.