O texto a seguir é o prefácio do dossiê “Embates na Educação Pública em 2016: das ocupações estudantis à greve docente”, organizado pelos professores Carlos Henrique de Silva Castro e Luiz Henrique Magnani, da Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da UFVJM. O dossiê foi produzido ao longo do ano como parte de atividades regulares de disciplinas do curso. Os textos do dossiê serão divulgados dia após dia a partir dessa primeira publicação! Ao fim, será divulgada uma versão completa, em PDF, contendo todos os textos do dossiê. Boa leitura!
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Prefácio
Iniciado no primeiro semestre de 2017, o presente dossiê resulta de uma atividade realizada nas disciplinas ‘Leitura e Produção de Texto’ e ‘Gêneros Discursivos e Textuais’ do curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), campus de Diamantina. Acima de tudo, é fruto de um trabalho coletivo, envolvendo professores e estudantes, educadores e educandos. Um processo construído o quanto possível de forma dialógica que buscou as vozes dos diferentes sujeitos envolvidos. Isso, desde um debate inicial a respeito sobre o tema escolhido até as diferentes propostas de execução que cada grupo de estudantes assumiu.
Em sala de aula, a temática da greve docente no contexto da UFVJM em 2016 foi compreendida pelo grupo de estudantes como um ponto de partida relevante, necessário para os próprios graduandos envolvidos compreenderem de modo mais aprofundado a conjuntura em que viviam. Em janeiro de 2017, chegavam à Diamantina os estudantes da Educação do Campo da UFVJM. Federal dos Vales, ao longo dos quais muito dos nossos estudantes moram. Mas também federal do Norte de Minas, do Vale do Rio Doce e de outros locais onde moram ou trabalham estudantes do curso. O motivo daquela chegada era, mais uma vez, o Tempo Universidade.
Aos menos acostumados com a terminologia e com os pressupostos da Educação do Campo e da Pedagogia da Alternância, vale uma breve contextualização. As Licenciaturas em Educação do Campo são cursos de graduação destinados a formar professores para o ensino médio e anos finais do ensino fundamental, com um currículo que dê o devido foco à realidade campesina e seus sujeitos. Há muito mais do que isso envolvido, na realidade, e fica a sugestão de se buscar mais referências em relação ao debate nacional da Educação do Campo. No Brasil, a implementação de tais licenciaturas em diversas universidades públicas se deu a partir do início desse novo século. Isso, basicamente, como resultado da atuação dos mais diversos movimentos populares do campo.
Uma das características que marcam a Educação do Campo nas Licenciaturas é a manutenção do “regime de alternância”, sistema já consagrado nas Escolas Famílias Agrícolas (EFA). Em termos gerais, pode-se dizer que o regime de alternância procura respeitar a sazonalidade do campo, as particularidades do território no qual o processo educativo se dá. Para tanto, as atividades são organizadas em duas situações formativas distintas: o Tempo Universidade (ou Tempo Escola em algumas universidades) e o Tempo Comunidade.
O Tempo Universidade (TU) é o momento em que o estudante vai ao espaço escolar, encontra-se em sala de aula com os professores e também com discentes de outras comunidades. É um momento em que os professores presencialmente abordam suas respectivas disciplinas, as discutem com os estudantes e propõem atividades diversas. Na LEC-UFVJM, esse período ocorre de modo concentrado em dois blocos de seis semanas consecutivas, com atividades diárias que totalizam geralmente a carga de oito horas. Cada um desses blocos tem seu início programado para início de janeiro e final de junho, respectivamente.
O Tempo Comunidade (TC) já é previsto para ocorrer no próprio contexto em que o estudante vive e atua profissionalmente. No calendário, esse período faz parte do ano letivo, as disciplinas ainda estão em aberto e ao discente são atribuídas parte de suas atividades a serem realizadas no e com o local. Esse período conta com visitas de professores da universidade a algumas comunidades, escolhidas estrategicamente pelas condições concretas de reunirem estudantes de regiões mais próximas. São os chamados núcleos de alternância.
Assim, nesse TU iniciado em janeiro de 2017, o cenário de chegada dos estudantes estava um tanto atribulado. A UFVJM estava vindo de uma greve docente, iniciada em 31/10/16. Ainda antes, secundaristas ocuparam uma escola tradicional da cidade de Diamantina. Estudantes universitários, por sua vez, ocuparam a reitoria da federal. E essas não eram situações isoladas, restritas à Diamantina ou à UFVJM. Inúmeras outras instituições públicas entraram em greve e tantas outras escolas haviam sido ocupadas no território nacional. Em 29 de novembro, uma manifestação nacional ocorreu em Brasília como forma de protestar contra a PEC 55 – proposta de emenda constitucional naquele momento em votação no Senado. Em dezembro de 2016, no entanto, optou-se em assembleia docente pelo término da greve. O reinício das aulas do calendário das outras graduações foi marcado para o dia 16 de janeiro. Essa decisão não afetava o calendário da LEC, previsto também em assembleia para ter o Tempo Universidade mantido, interpretado como atividade essencial da universidade.
Momentos como esses afetam muita gente, nem sempre do mesmo modo. Para os professores e estudantes da Educação do Campo, em específico, essa greve trouxe questões e debates particulares. Internamente, a assembleia docente precisou refletir sobre a condição da LEC. Do ponto de vista prático, o Tempo Universidade envolve um conjunto diferenciado de gastos para garantir a moradia dos estudantes e, parcialmente, a alimentação. Se as condições de uma graduação com calendário tradicional já é mais conhecida, previsível e, por isso, passível de ser posta em debate entre docentes, não ocorria o mesmo com a LEC e seu calendário. O comitê de ética da assembleia entendeu que, dadas as particularidades do curso, a coordenação internamente teria mais condições de avaliar o que seria atividade essencial ou não do curso. Diante desse posicionamento, o colegiado do curso assumiu que realizar o Tempo Universidade de janeiro era uma atividade essencial, principalmente por questões logísticas e financeiras ligadas a compromissos já estabelecidos. O restante das atividades do calendário foi suspenso.
Quando deflagrada a greve, vale ressaltar, os estudantes do curso não estavam na presença de professores, e sim em suas próprias comunidades. Longe da sede da UFVJM, longe de Diamantina, da possibilidade de acompanhar o debate de perto. As assembleias docentes, a ocupação dos estudantes, tudo era de difícil acesso. Era Tempo Comunidade do segundo semestre de 2016, com textos, trabalhos a serem entregues, muitos prazos de entrega perto de seu limite. Por escrito – ainda que por e-mail – toda comunicação vinda de professores da universidade poderia ser vista com caráter institucional, vinda de um servidor público. O que dizer ou não dentro desse local de fala? Condição que, junto com rumores de corte de ponto que circulavam na ocasião, pressionava a classe docente e dificultava o diálogo com os discentes do curso. A dita grande mídia, em um geral, não cobriu esse processo ou o fez de modo muito periférico. As redes sociais, os blogs e canais midiáticos digitais, alternativos, trouxeram grande parte da informação. Nem todos os estudantes da LEC, no entanto, tem como rotina informar-se a respeito de tais assuntos via redes sociais ou canais institucionais. Além disso, em tempos de pós-verdade, como não se perder em guerras de desinformação?
Quando os estudantes da LEC retomaram suas atividades na universidade, o restante das graduações já havia passado por outra greve da qual ainda não havia retornado. As salas de aula estavam vazias, preenchidas apenas pelo pessoal da Educação do Campo. No reencontro com os estudantes nas aulas de Leitura e Produção de Texto, muitos relataram a sensação de incerteza, dúvida, dificuldade de compreensão do momento de greve vivido. Em partes, uma das funções que o ativismo espera da greve é justamente a de interromper certos fluxos, certas rotinas, certas continuidades. Em um curso ainda em seu início, essa ruptura parece ter tomado dimensões ainda maiores. A partir desse quadro, dessa inquietação vivida no contexto da LEC-UFVJM e tematizada em sala de aula, o material aqui apresentado passou a ser pensado e confeccionado. E, nesse processo, percebeu-se não ser possível analisar apenas a greve docente ocorrida, de modo descontextualizado de toda a conjuntura local e nacional. Esse entendimento deu margem para a ampliação das investigações para assuntos correlatos, em geral vinculados à questão da educação enquanto política pública.
Composto por dez textos, produzidos por grupos de graduandos da Licenciatura em Educação do Campo, o presente dossiê procura contribuir com a memória desse momento específico e significativo para o grupo envolvido. Momento vivenciado tanto local quanto nacionalmente, em diferentes escalas, dentro e fora da universidade. O material procura trazer dados, informações, reflexões, olhares e vozes sobre a conjuntura vivida na ocasião. É um trabalho certamente incompleto, que esbarra no limite concreto de ser resultante de uma atividade de graduação realizada dentro das condições concretas e atribuladas que o espaço de uma disciplina oferece. E se, em tese, muitos outros lados poderiam ter sido consultados, outras reflexões poderiam ter sido realizadas, é de se ponderar que o próprio recorte das escolhas feitas pelos estudantes também é, em si, um texto. Texto esse que fez emergir um conjunto particular de perguntas ou reflexões sobre a conjuntura em questão, percebidas talvez como mais urgentes, talvez como mais viáveis de servirem de base concreta para este registro escrito.
Carlos Henrique Silva de Castro e Luiz Henrique Magnani – organizadores.