Por uma educação diferente: cursinho popular Lélia Gonzalez

Colaboradores: Betânia de Lima, Julia Felice Incao e Rafael Baptistella

A desigualdade social é uma questão central nos estudos sobre o Brasil. Abordada por diferentes correntes teóricas, a origem e as consequências desse problema foram interpretadas das mais variadas formas. Para Jessé Souza, o entendimento da desigualdade se dá pela ambiguidade da sociedade moderna: se apresentar como igualitária e justa, mas marcada por desigualdades e injustiças (SOUZA, 2011, p 388).

A sociedade moderna, em nosso país e no mundo, se baseia em dois grandes princípios: a preservação da igualdade social (ou da dignidade) e das liberdades individuais (ou do expressivismo). Para o autor, esses princípios derivam da hegemonia das ideias liberais e geram uma dominação legítima e justa: o princípio meritocrático, grande naturalizador das desigualdades (SOUZA, 2011, p 389).

É pensando na desigualdade que surge o cursinho Popular Lélia Gonzalez. Compreendendo o vestibular como um mecanismo que legitima a exclusão, o projeto social foi criado em 2016, na cidade de Campinas-SP, visando atender aqueles que não conseguem acessar colégios particulares e cursinhos privados para facilitar seu acesso à Universidade pública. Para compreender melhor sua gênese e seus objetivos, entrevistamos Armando Augusto Raphael e Vinícius André Costa, respectivamente fundador e atual coordenador do projeto.

Começando pelo primeiro entrevistado, começamos com o professor Raphael, que é formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestrando em Sociologia também pela Unicamp, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Com uma ampla experiência como professor, já atuou em vários cursinho populares de Campinas e região, lecionando nas áreas de história, filosofia, sociologia, geopolítica e atualidades, além de estar a frente do projeto em questão, como fundador e coordenador, o Cursinho Popular Lélia Gonzalez.

Como surgiu o cursinho popular Lélia Gonzalez e por que fundar um cursinho popular?

O Lélia surge como uma consolidação de anos de observação de pessoas dentro da educação popular, que trabalham com a educação popular. No meu caso já havia 8 anos que eu trabalhava com esse tipo de modalidade de ensino e aí a gente começou a condensar os erros e os acertos e tentar montar um projeto fincado em praticamente em três pilastras principais: a pedagogia histórico-crítica, uma pedagogia da autonomia; o não-atrelamento ao Estado, entendido como aparelho da burguesia e também como uma força que atravessa várias pessoas, pessoas diferentes e que pelos seus próprios ordenamentos políticos acaba mudando o direcionamento dos projetos de educação popular que são atrelados a ele, depende de diretores e coordenadores de escolas e afins; e a autonomia docente, bem importante para nós, construir uma autonomia, de professores mesmo e não de voluntários. A evasão em cursinhos populares é bem alta e boa parte se dá pelo fato dos alunos não terem boas aulas ou ter aulas com pessoas que não estão comprometidas com esse tipo de coisa [educação popular]. O Lélia nasce nesse contexto, um contexto de consolidação. Em 2016, junto com alguns outros professores eu fundei o colégio e em 30 de maio de 2016 a gente fez nossa primeira turma e contava em torno de 20 alunos na manhã, uns 15 à tarde e uns 30 à noite.

Como foi a escolha do nome do cursinho?

Antes de fundar o Lélia, eu tive uma ideia de fazer um projeto com mais duas amigas que seria uma escola privada, que seria o cursinho Marighella, em 2010, 2011, e a gente pensou a princípio em trazer o nome do Marighella para o projeto, aí depois a gente pensou no Milton Santos, a ideia de um intelectual negro, aí veio uma terceira ideia veio depois que eu tive uma aula onde tive acesso aos textos Angela Davis, e fui apresentado a Lélia Gonzalez, então eu comecei a estudar um pouco a Lélia Gonzalez e aí eu comecei a estudar a idéia do ‘lugar de negro’, do livro dela que eu acho fantástico, e pensar esse lugar que a gente ‘exerce’ na sociedade como negro, e também trazer o nome de uma mulher, uma mulher negra, para dentro de um projeto de educação popular, o que praticamente não existia. Os nomes de homenageados são sempre de homens, a gente colocou o nome da Lélia, que representa um pouco o que a gente quer construir pelo espaço da questão da mulher e da questão racial. O nosso público na escola é majoritariamente feminino, em torno de 75% dos alunos são mulheres, então a gente cria mais ou menos nessa posição.

Como é a demanda pelo cursinho? Qual é o público que procura vocês e estuda no cursinho?

A demanda pelo cursinho foi mudando um pouco ano a ano, quando a gente pensa em demanda, pessoas que nos procuram. A princípio, no primeiro ano foi um projeto que foi divulgado em pouquíssimo tempo, em torno de quarenta dias, e havia em torno de 175 inscritos, e fizemos isso pela internet. Então o pessoal que nos procurava era o pessoal de renda baixa, de alguma classe média baixa e pessoas pobres, era mais ou menos nosso público de início em 2016. 

Com o sucesso do projeto pedagógico, nossas turmas tiveram nos últimos dias de aula em torno de dezoito alunos, e desses dezoitos alunos a gente deve doze alunos que ingressaram de alguma forma em alguma universidade, e essas aprovações e as divulgações que a gente fez em relação às aprovações espalharam como um rastro de pólvora, então a gente conseguiu no ano de 2017, no segundo ano, mais de 500 inscrições. 

Nessas 500 inscrições começaram a aparecer umas coisas mais heterodoxas, como pessoas muito pobres, de espaços periféricos, distantes do centro da cidade; pessoas de outras cidades da região: Hortolândia, Sumaré, a gente tem aluno de Cosmópolis. Nossa forma de seleção sempre foi quem chegou primeiro, até esse ano, porque 90% das pessoas eram de renda baixa. Não havia necessidade de muita burocracia para seleção. Em 2018 teve um ‘boom’ no Lélia, porque em 2017 tivemos cerca de 45 aprovações e isso gerou uma comoção, o nome da escola começou a ser muito falado. Os professores começaram a se juntar no projeto, já disse, como o processo da docência é um dos pilares da escola, professores muito bons, professores comprometidos, professores com renome na rede privada de ensino nessa lógica de cursinho, isso começou a atrair muita gente. 2018 foi um ano muito incrível, dos cento e poucos alunos que a gente tinha no fim do ano, aprovamos uns 75, uma média que supera todas as escolas da cidade em percentual de aprovação. 

No ano de 2019, nós tivemos alguns problemas por conta disso, essa ideia de quem chega primeiro pega a vaga. 74% dos alunos eram de escola pública, ou seja, a gente abriu 26% para alunos de escolas privadas. Ou seja, mudou um pouco as características do cursinho: o cursinho começou a ficar mais branco, tivemos alguns disparates em questões de renda, de comportamento das pessoas. Dentro de um projeto de educação popular, eles estavam esperando e exigindo coisas que são vendidas pelos cursinhos comerciais. Agora no meio do ano, na turma do semi, começamos a fazer alguns critérios de seleção socioeconômicos e raciais: a gente faz uma inscrição geral, pela internet, mas dá preferência para pessoas que obedeçam determinados critérios: se são pessoas lgbts, questões de raça, gênero, renda, vamos decidindo na hora de acordo com as inscrições que vão aparecendo.

Como é a relação do cursinho com a comunidade?

A questão geográfica é uma coisa interessante. A questão da relação com a comunidade que tem a ver com a ocupação do espaço. A gente decidiu ir atrás de alguns lugares e o único que a gente achou foi em cima do bar da Marcinha, o (…) bar que fica na Glicério, na frente do Largo do Pará. E a princípio a gente achou esse lugar, porque era um lugar muito barato, muito em conta, a Dona Márcia fez para a gente um preço muito camarada, muito abaixo do valor de qualquer sala comercial que possa ser alugada ali na Glicério, e acabou sendo um espaço que acabou transcendendo a própria questão da escola em si. 

Como funciona dentro de um bar, você circula ali, e é um bar numa localização central, então ali circula de pedinte a pessoas que estão indo pegar o ônibus para ir para Viracopos, enfim, executivos que param, tomam um café, conhecem a Dona Márcia a muito tempo, ela está ali a quase trinta anos naquele espaço e essa convivência junto com alunos começou a ter debates interessantes, até dentro do bar, e a gente passou por duas eleições, uma eleição municipal e uma eleição nacional durante o processo do (……) da escola, e foi muito interessante ver como uma escola pode ser construída, pode ser colocada em lugares que não necessariamente são travados, são tratados para a prática escolar. É muito legal porque a gente é uma escola em cima de um bar em uma das principais avenidas da cidade, provavelmente a avenida que têm mais agências bancárias e a gente é a única escola daquela região. 

Então traz uma questão muito interessante com a comunidade: o pessoal que ali frequenta o bar da Dona Márcia sabe que tem uma escola, é um pessoal que perguntam as coisas, que ficam felizes quando a gente a gente coloca as aprovações e tudo mais… Então é um negócio que eu acho bem importante que acabou sendo colocado.

O professor Armando Raphael deixa claro qual é a educação que o cursinho busca colocar em prática desde a sua idealização até o dia-a-dia dentro da sala de aula. Nesse projeto de educação, a escolha do nome do cursinho é um fator central, mas sim faz parte de uma pedagogia histórico-crítica que portanto reconhece gênero como “uma categoria útil para análise histórica” (SCOTT, 1995) e de fato colocar a questão da mulher e de raça como central no projeto do cursinho, como nos conta Raphael, que são preocupações do projeto. 

Lélia Gonzalez, a homenageada com o nome do cursinho, foi uma intelectual e ativista do movimento negro no Brasil, fala em seus textos  que “desde a independência aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática político-social preocupados com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira” (GONZALEZ, 1984, p. 1), daí a importância e entender como é essencial que o cursinho se mantenha sem o Estado e crítico ao Estado, pois assim é possível criticar o racismo estrutural e colocar nas boas universidades pública quem, historicamente, não a frequenta.

“É nesse sentido que o racismo, enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas, denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social.” (GONZALEZ, 1984, p. 3).

Essa questão também foi abordada por Lila Schwarcz. Para a antropóloga, a escravidão no Brasil enraizou costumes e palavras. Com isso, a prática se torna mais do que um sistema social, mas algo que moldou condutas, desigualdades e tornou “raça” e “cor” como marcadores de diferenças. A escravidão criou uma “memória incorporada”, capaz de criar réguas de condutas sociais a partir da cor da pele (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p.92).

Cabe lembrar também, que, se Lélia nos alerta sobre a desigualdade na sociedade brasileira e qual é lugar da população negra historicamente em seu livro, citado por Raphael, “Lugar de Negro” (GONZALEZ, 1982). Apesar de uma estrutura social racista, essas pessoas se destacam em diversas áreas e o projeto desse cursinho tem a proposta de deixar isso evidente por reconhecer como a representatividade é importante para os 75% dos estudantes do cursinho, que são mulheres negras. Então, homenagear Lélia Gonzalez com o nome do cursinho e ainda homenagear nomes de Marielle Franco e Carolina de Jesus no nome de suas salas, é mostrar que nesse projeto a questão de gênero, raça e classe é central, assim como a questão da representatividade.

Continuando com a próxima entrevista, conversamos também com o atual coordenador pedagógico Vinícius André, que tem experiências e atua como professor de Gramática, Redação e Literatura, e é graduando em letras pela Unicamp. O professor Vinícius nos conta sobre suas experiências a seguir.

Por que participar de um cursinho popular?

A gente sabe que o vestibular é um processo injusto e historicamente só alunos de boas escolas ou, na realidade, de escolas particulares têm chances de acessar a universidade. O cursinho popular luta justamente contra isso: tenta democratizar o ensino superior colocando alunos e alunas sem condições financeiras nas universidades.

Há também uma espécie de identificação por essa causa porque eu estudei minha vida inteira em escola pública e via que meus colegas não conseguiam acessar a universidade, que isso era um privilégio para um determinado grupo social, mais privilegiado. 

Então participar de um cursinho popular é lutar para que pessoas sem oportunidade de pagar uma boa escola ou um bom cursinho consigam também estar no ensino superior.


Quais têm sido os maiores desafios/dificuldades e as maiores gratificações da coordenação do Lélia?

O maior desafio é lidar com os professores. São 80 voluntários, são muitos professores. Por exemplo: um precisa faltar, aí você tem que arrumar alguém para substituir, trocar horário, isso toma muito tempo. A maior dificuldade é coordenar um grupo tão grande de professores, seja pelas faltas, pelas questões pedagógicas de adequação do conteúdo que está sendo trabalhado. Outra coisa trabalhosa são os simulados, porque os professores mandam questões, mas a gente tem formatar, diagramar, isso toma um tempo também.

A maior gratificação é pensar que o Lélia é provavelmente o maior cursinho popular da cidade. Tem o maior número de horários de aula, já que os populares geralmente possuem aulas só no período noturno ou aos sábados enquanto o Lélia tem manhã tarde e noite. E por ser um cursinho tão grande, tão conhecido, pelo grande número de aprovações, pela qualidade das aulas, com professores bem selecionados. Enfim, é o fato do cursinho estar dando certo, estar colocando bastante gente nas faculdades, me deixa muito feliz e mostra que o cursinho está valendo a pena. 

Como tem sido a resposta dos alunos (feedback) sobre o cursinho, aulas, professores?

É o melhor possível. Os alunos se identificam com o cursinho, gostam dos professores, ficam estudando no contra-turno, vão nas aulas extras de sábado. A limpeza é responsabilidade deles, inclusive. Eles cuidam do cursinho. 

Como colocado por Armando Raphael ao apresentar os pilares fundacionais do cursinho, tais como, a pedagogia histórico-crítica e a pedagogia da autonomia, pretende-se não somente reproduzir-se a massificação conteudista dos cursinhos comerciais, mas também discutir e promover a reflexão dos alunos enquanto sujeitos inseridos dentro deste contexto social de múltiplas disparidades, nas quais, temos de um lado, indivíduos guarnecidos de todo um aparato social, político e econômico facilitando seu acesso à formação acadêmica que possibilitará a manutenção de boas condições de vida, possibilitados inicialmente por condições familiares de mesmo estrato e de outro, sujeitos desprovidos destas mesmas condições que figuram na sociedade como “sujeitos subalternos”.

Para Spivak (SPIVAK, 2010, p.12), o termo “subalterno” não deve ser usado para todo e qualquer sujeito marginalizado, mas sim , deve se ater ao seu significado atribuído por Gramsci ao referir-se ao “proletariado”, ou seja àquele cuja voz não pode ser ouvida.

O termo subalterno, para a autora , descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.

Spivak coloca em voga, a questão da tentativa errônea de defesa dos sujeitos subalternos por sujeitos validados socialmente como intelectuais que julgam poder falar por meio do outro e, por meio dele , construir um discurso de resistência, reproduzindo desta forma, as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem que este se apresente com uma voz realmente sua e não uma versão “prefaciada” da interpretação daqueles que o estudam.

O Cursinho assim, contribui para que os estudantes oriundos de classes de sujeitos subalternos, consigam  ingressar no meio acadêmico universitário, não apenas para garantir uma formação intelectualizada exógena, mas para a construção de uma nova intelectualidade baseada em saberes plurais, novos ou há muito ignorados ou desonestamente coibidos pela hegemonia classista dominante dos ambientes universitários, sobretudo os de grande prestígio social, tais como o da Universidade Pública. Ainda de acordo com (SOUZA, 2011, p. 15), a impressão amplamente difundida, seja pelos meios de comunicação que chegam ao público em geral, seja pelo debate político, acadêmico, de que os problemas políticos e sociais brasileiros conhecidos e “mapeados”, oriundos de um processo de desigualdade que se funda em um passado longínquo, cuja perenidade explicaria os processos de desigualdade atuais, estaria equivocada.

A violência simbólica adquire traços modernos e características de perpetuação que se adequaram muito bem à narrativa quase que exclusivamente economicista da compleição social-econômica brasileira, na tentativa de elencá-las e justificá-las por meio da órbita racionalista em torno da entidade que se torna o “Mercado”.

Dentro desta elíptica basicamente numérico-estatística que se apresenta de forma mais palatável ao seu público, invisibilizam-se de forma deliberada, os fatores não econômicos da desigualdade entre os indivíduos, tais como suas precondições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial entre estes, afastando-os de uma situação de equidade.

Para Souza (2011, p. 18), o economicismo é a visão dominante também de todas as “pessoas comuns” no sentido de “não especialistas”, ou seja, das pessoas que não são “autorizadas”, pelo seu capital cultural e jargão técnico, a falar com autoridade sobre o mundo social.  É isso que faz do economicismo a ideologia dominante do mundo moderno.

Neste sentido a “cegueira” da percepção economicista do mundo reside em não enxergar a transferência dos “valores imateriais” na reprodução das classes sociais e de seus privilégios no tempo. Esses valores imateriais apresentam-se tanto nas classes econômicas mais altas quanto nas classes médias, mas sendo nesta última a melhor visibilidade do fenômeno, pois os valores culturais que vão sendo agregados desde a infância através de relações de afetos , tais como ver aos pais descansando e lendo jornais na sala, assistindo à debates ou à conteúdos culturais por meio de assinatura de televisão paga, ao acesso às informações tecnológicas de forma lúdica através de jogos digitais entre familiares, membros da família que viajam frequentemente e que falam outros idiomas, acesso a novas culturas, enfim, construções que já pré-qualificam um determinado tipo de sujeito, cujo perfil apresenta  predileção por parte do Mercado para os cargos mais almejados, complementando quando lhes falta, a técnica, uma vez que suas estruturas culturais já estão embasadas e alinhadas aos “valores” empresariais.

Desta forma, essa visão economicista “universaliza” os pressupostos da classe média para todas as “classes inferiores”, como se as condições de vida dessas classes fossem as mesmas. (SOUZA, 2011, p. 20).

Dentro deste contexto de subalternidades e tendo-se em vista a diferenciação dos sujeitos perante a sociedade é que espaços como estes, de formação e introdução desses sujeito sociais marginalizados e excluídos dentro das esferas de formação do conhecimento e do arcabouço cultural, tornam-se tão fundamentais para a construção, de fato, de uma sociedade que alcance a equidade entre seus indivíduos.     

A entrevista com o professor Vinícius retoma o ponto de partida – das desigualdades – com a adição de um dispositivo fundamental: o vestibular. Como pontuado pelo Coordenador do Projeto, o vestibular  é um processo injusto no qual historicamente só alunos de boas escolas ou, na realidade, de escolas particulares têm chances de acessar a universidade. Ainda relata de suas experiências pessoais como ex-aluno de escola pública, a percepção de que grande parte de seus colegas não conseguiam acessar a universidade pública, sendo esta restrita a determinado grupo social mais privilegiado. Entendido como um “processo injusto historicamente”, remete ao que Jessé Souza chamou de violência simbólica (SOUZA, 2011, p. 425). Para o sociólogo, os mecanismos de distinção social separam os que não tem (capital econômico) e os que não sabem (capital cultural) dos que têm e que sabem, a partir de práticas naturalizadas. Essas são enraizadas pelos indivíduos a partir de violências que aparecem suavizadas.

A meritocracia associada à Modernidade coloca no indivíduo a responsabilidade pela sua própria exclusão, ou seja, coloca nos estudantes não privilegiados a culpa pelo seu fracasso nas provas de vestibular. Como depende unicamente do indivíduo, a violência se dissolve e a exclusão é reflexo das práticas, das vontades e das limitações dos próprios excluídos.

Sintetizando, o vestibular possui uma face dual. Na interpretação de Foucault (SOUZA, 2011, p. 423), a sociedade moderna é marcada pela ilusão de liberdade. Essa ilusão se consolida na dualidade entre conteúdos manifestos e conteúdos latentes. Os primeiros são significados aparentes, ou seja, o vestibular visto enquanto mecanismo de seleção dos mais preparados, dos que conseguirão acompanhar os cursos a que se candidataram. O conteúdo latente, por sua vez, é o vestibular enquanto marcador de desigualdade, que separa os que podem dos que não podem. A relação entre os dois conteúdos é a manifestação da chamada violência simbólica. 

Assim, o projeto social visa desmascarar a violência simbólica e enfrentar o vestibular como um marcador de diferença. O que os voluntários e fundadores buscam é enfraquecer a desigualdade moldada pelo vestibular, levando as práticas pedagógicas e técnicas de resolução restritas dos cursinhos privados para os indivíduos e grupos que não podem acessá-los. 

Por uma educação diferente: Classe, gênero e raça no cursinho popular Lélia Gonzalez

Realizadores: Betânia de Lima Ribeiro Almeida Freitas; Julia Felice Incao e Rafael Baptistella Panzarin dos Reis.


**Trabalho final realizado para a disciplina  “GF402 – História Econômica , Política Social do Brasil ”, ministrada pela Profa. Márcia Tait, oferecida no Instituto de Geociências da Unicamp durante o segundo semestre de 2019.

Referências bibliográficas:

GONZALEZ, Lélia. “Lugar de Negro”. Editora Marco Zero Limitada, Rio de Janeiro, 1982.

GONZALEZ, Lélia. “Mulher Negra”; 1984.

SCHWARCZ. L; STARLING. H. “Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência” Brasil: uma biografia, 2015.

SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, 1995. 

SOUZA, J.. “A má fé da sociedade a naturalização da ralé”. In A ralé brasileira quem é e como vive, 2011.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno Falar? Prefácio e Capítulo 1. Editora UFMG, 2010.

Fonte das fotos e imagens: página oficial no Facebook do Cursinho Lélia Gonzalez: < https://www.facebook.com/cursinholelia/ > novembro de 2019.