Diálogo de saberes: das palavras às ações
Análise de uma experiência de tecnologia social. Bariloche, Argentina
Por Virginia Martínez Coenda
CONICET – Universidad Nacional de Córdoba/Argentina
A proposta de Boaventura de Sousa Santos da ecologia de saberes constitui um princípio epistemológico fundamental para superar, de um lado, a monocultura do conhecimento e do rigor e, de outro, as demais formas de invisibilidade que se construíram a partir dela. No entanto, quando tentamos operacionalizar metodologicamente este princípio, surge uma série de dificuldades para fazer dialogar o nosso conhecimento acadêmico – historicamente hierarquizado – com outros de diferentes matrizes epistêmicas.
No ano 2013 começou na cidade de Bariloche (Argentina) uma experiência de desenvolvimento de uma tecnologia para moradias de madeira, realizada por pesquisadoras(es) do campo científico-tecnológico e por três organizações da economia social/solidária, com base nos princípios da tecnologia social que, segundo Renato Dagnino, são: adaptadas ao pequeno tamanho, liberando o potencial criativo das(os) trabalhadoras(es) e não produzindo hierarquias entre elas(es). A perspectiva metodológica que guiou a experiência foi a da pesquisa ação participativa que combina (desde a década de 1970, ano de surgimento na América Latina, com um referente como Orlando Fals Borda), participação e ação para transformar a realidade em um sentido democratizante.
Baseadas(os) na proposta de pesquisa-ação participativa, realizamos oficinas produtivas (levadas ao cabo na carpintaria de uma das organizações) as quais participamos na condição de atores do setor científico-tecnológico e das organizações da economia solidária, com o objetivo de combinar diferentes conhecimentos para o desenvolvimento de um sistema construtivo baseado no uso da madeira das espécies locais de pinus. Como resultado dessas oficinas, um protótipo de moradia foi construído em novembro de 2016 para verificar tecnologicamente seu funcionamento. Em termos epistemológicos, o resultado foi um diálogo efetivo de conhecimento, mas com a persistência da hierarquia do conhecimento científico que só às vezes conseguiu fugir da centralidade e abrir espaço para outras epistemes.
Boaventura de Sousa Santos argumenta que, para possibilitar um diálogo de saberes, é necessário superar a hegemonia da razão moderna, instalada como a única maneira correta de ser e estar no mundo. A partir dela, estabeleceu-se o que Sousa Santos denominou como monoculturas, como por exemplo a do conhecimento e do rigor, que postula que o único conhecimento rigoroso é o conhecimento científico. Diante das monoculturas, o autor sugere interpor as ecologias que, com um caráter mais pluralista, visam situar a razão hegemônica moderna em relação a outras racionalidades. A ecologia (ou diálogo) de saberes seria a base epistemológica sobre a qual um mundo mais plural seria construído. Não é, seguindo o autor, nem um fundamentalismo anti-ciência essencialista, nem um relativismo total que postula que todo conhecimento é sempre o mesmo. Em vez disso, trata-se de desconstruir a ideia de que, em princípio, a ciência é o único conhecimento válido, para avançar, num deslocamento pragmático das hierarquias.
Assim, a criação de modos de produção (e de vida) de autogestão e solidariedade, implica, simultaneamente, construir outros sistemas de conhecimento, outras tecnologias que originam vozes e corpos que carregam outros conhecimentos e outras experiências ausentes. As oficinas produtivas desenvolvidas na experiência de Bariloche foram, então, um ensaio de produção de uma ecologia de saberes, de produções, de escalas: um processo de inclusão social construído a partir de uma inclusão cognitiva e orientado ao desenvolvimento de tecnologias sociais capazes de reconhecer e incorporar conhecimentos territorializados atualmente produzidos como ausentes.
No entanto, esse desejo de pluralidade horizontal é tensionado pela existência de relações de poder que nem sempre conseguem se desarticular e que precisam ser reconhecidas. Assumir que é suficiente a mera vontade de articular as diferenças para efetivamente articulá-las, infertiliza o conceito de diálogo de saberes e o imuniza em suas potencialidades inclusivas. É importante partir do reconhecimento de que a possibilidade de desenvolver um processo de construção participativa do conhecimento enfrenta, quase em seu primeiro movimento, os limites da desejável horizontalidade. Acontece que esses processos não surgem de um vácuo, mas estão inscritos no quadro de experiências que contornaram um tipo de relação social que, como já foi apontado, hierarquiza o conhecimento acadêmico sobre outros campos da experiência e do conhecimento. Assim, tentamos explicar aqui alguns interstícios e tensões que o diálogo de conhecimento assumiu, como um exercício micropolítico, localizado nas oficinas de produção.
- As palavras e os silêncios
A primazia do uso da palavra no paradigma atual de produção de conhecimento (especialmente aquela estruturada a partir do discurso acadêmico), tem uma relação estreita com a situação de privilegio que é concedida ao conhecimento científico: na palavra erudita é resumida a relação conhecimento-poder na que, especialmente, inscreva-se a possibilidade de silenciar outras expressões, outros campos de experiência e produção de conhecimento. Dado esse reconhecimento, nos espaços das oficinas foi promovida uma relação singular com o silêncio. Se é verdade que o silêncio representa o efeito apreendido em corpos subalternizados após anos de silenciamento violento, também é verdade que outras línguas, outras sensibilidades, estão alojadas ali. Porém, para chegar ao momento da emergência desses outros conhecimentos, foi necessário percorrer o desconforto do silêncio que denunciou ali, em cada cena repetida de conversas ou reuniões em que se não falassem técnicas(os) e pesquisadoras(es) ninguém o faria, o lugar de privilégio que historicamente havia sido atribuído a esses discursos.
- Os corpos e os afetos
Na passagem pelo desconforto desse silêncio, novas formas de diálogo surgiram. Durante as oficinas, ficou evidente que a expressividade dos corpos era o inescapável apoio discursivo naquele diálogo: quem trabalha com madeira fala com as mãos. A expressividade dos corpos compartilhando um espaço comum – como é a oficina – coloca o diálogo do conhecimento através da força de outros suportes discursivos, capazes de abarcar os saberes e campos de experiência que escapam ao registro logocêntrico acadêmico. As rupturas e deslocamentos que foram criados nas oficinas permitiram temporalidades extensas que habilitaram a criação de confiança e afeto. A racionalidade perde, assim, seu suposto caráter universal como um organizador de decisões. Lá, os mecanismos da racionalidade estavam entrelaçados com a emotividade a tal ponto que era impossível estabelecer qual deles determinava qual.
- Os objetos e as imagens
Ao mesmo tempo, a expressividade dos corpos afetivos trouxe os dispositivos tecnológicos, muitas vezes como suporte ou canal de transmissão desses afetos. Uma visão construtivista da tecnologia sugere que são as sociedades que definem, projetam e produzem artefatos tecnológicos. No entanto, os primeiros sinais de que este postulado foi incompleto foi advertido pelos trabalhadores: “a madeira pede para você fazer isso ou aquilo”. A madeira te pede. Como se tornar um/a surdo para isso? Como continuar pensando nos objetos como algo morto, inerte, à plena disposição das necessidades das pessoas? Essas questões nos colocaram diante do exercício de compreender porque os objetos que não se limitam exclusivamente à sua definição instrumental, como meio de resolver as necessidades das pessoas. Nessa perspectiva, foi possível entender que a aparência do plano material (a broca, o martelo, a tábua, o machimbre) produziu um canal de comunicação que, sem ele, não existiria. Assim, os objetos tornaram-se fundamentais para o diálogo do conhecimento, uma vez que possibilitaram um suporte para o conhecimento empírico (e corporalizado) ligado ao oficio da carpintaria.
Silêncios, corpos (afetivos), objetos e imagens surgem, então, formando uma matriz plural de suportes discursivos na qual a palavra ressurge, após seu silenciamento estratégico, para estabelecer um diálogo a partir de um lugar não totalizador. É válido reconhecer que esse silenciamento estratégico é, em parte, um reprodutor da assimetria: em algum ponto depende da vontade da pessoa que exerce o poder de abandonar os dispositivos convencionais. Mas, precisamente por ser um gesto político decolonial, pode ser entendida como uma assimetria possibilitante, enquanto não é simplesmente uma provocação de ordem moral e não depende de uma vontade que solapadamente reproduz relações verticais, se aproximando aos outros(as) para dar-lhes voz. Pelo contrário, sair desse modo relacional, embora com os traços que são mantidos neste processo de transição e transformação para os outros modos possíveis, é reconhecer a autonomia com a que cada agente aplica seus campos de sentido e aceitar que o diálogo, aberto a novos critérios de hierarquização entre conhecimentos, é um aspecto que o torna complexo e abre novas possibilidades para a solução de problemas sociais.
Conheça um pouco mais da experiência assistindo ao vídeo produzido por Fernando Vanoli.
https://www.youtube.com/watch?v=JoH7nZKNzIA
Referências
DAGNINO, Renato. Tecnologia Social. Contribuições conceituais e metodológicas. Campina Grande: Editora EDUEPB, 2014.
RAHMAN, Anisur; FALS-BORDA, Orlando. La situación actual y la perspectiva de las IAP en el mundo. Análisis Político, a. 5, 1989, pp. 14-20.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Renovar la teoría crítica y reinventar la emancipación social. Buenos Aires: Editora da CLACSO, 2006.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Editora da UDELAR/Trilce, 2010.
Trabalho final realizado para a disciplina “Epistemologias situadas e engajadas – corpos, contextos e políticas na produção de conhecimentos”, ministrada pela Profa. Dra. Márcia Maria Tait Lima, no programa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).