Márcia Tait, dezembro 2020.
No início, o contágio…e muitas perguntas e perplexidade
“Yvará pypyte
apyka apu’a i,
pytú yma mbyte re
aguero-jera”
“do Vazio Inicial/enraizou seu florescer”
(Kaka Werá Jecupé no livro Tupã Tenondé: a criação do universo da terra e do homem segundo a tradição Guaraní)
Respiração, inspiração, expiração: o dentro, o fora, o holograma: respirar, acalmar e curar.Contagiar…será que não é mais um momento do processo? …resinificando palavras como luta, resistência e utopia, para afetar-se, cuidar-se, este é o sentido de contagiar?
As nossas humanas interferências sobre o mundo, as nossas ações inconscientes que levaram a uma crise civilizatória, ao umbral do precipício do antropoceno-capitaloceno (Barcelos, 2019), o ápice da agressividade e avidez humana metamorfoseada no “povo da mercadoria”. As origens profundas podem estar no medo, antítese do amor, e em necessidades profundas não atendidas? Como pensar-sentir-agir proliferando outros mundos e uma intersecção fecunda entre mundos? Fora da compulsão por agir, do impulso do medo. Como pensar ação pela não ação, a resistência, pela recuperação e regeneração (Baba, 2016; Rosenberg, 2006; Bruce e Kopenawa, 2015).
“Comparo os desafios ou obstáculos a lugares de parada na jornada da alma em evolução. A viagem é longa e muitas vezes nos sentimos cansados (…) Às vezes precisamos parar e nos alimentar (…)” (Baba, 2016, p. 21). Por um tempo que não sei precisar, mas que extrapola esta vida minha, fundamentalmente vivemos desabitando nossas casas e corpos. “O mundo não pode parar. E o mundo parou”, assinala o intelectual indígena, povo medicina, Ailton Krenak (2020, p. 5).
A pandemia permitiu a alguns, como no meu caso, preciosas oportunidades de reabitar, reencarnar ou, como dizem as feministas comunitárias “acorparse” e “sanarse” (Cabnal, 2018). O tempo, como entidade fundamental de percepção humana, não parou, para alguns está mais acelerado, para outros mais lento, outres até dizem “congelado”, em suspensão… tempo ganho, tempo perdido, “temos nosso próprio tempo”? O tempo, porém, é encarnado, sendo a noção de espaço, também raiz de nossas vivências e percepções, o “corpo-território” (Tait e Gitahy 2019, Cabnal, 2010) é onde os tempos vivem.
Os tempos que preenchem o habitar e que vimos transformar-se, via processos quase mágicos de virtualização, em mais tempos-de-tempos, que “olvidam espaços” e materialidades já não tão possíveis. O tempo e o habitar ganham outros (não) contornos ambíguos de liberdade-aprisionamento que passaram a nos acompanhar cotidianamente nos meses de império do doméstico, da domesticidade pandêmica.
Ah, o tempo pandêmico…A domesticidade como ócio e fruição, aquele ideal de ter finalmente mais tempo para aproveitar em mil atividades remotas disponíveis, logo descambou…O ócio já não tinha sentido, já não ressoava em nosso corpo-mente, como um dia num passado ou devir humano pode ter ressoado. Esse descansar comum, dimensão básica de “buen vivir”, parece que de alguma forma, de tanto não ser mais sentido — perdeu o sentido, precisa ser reaprendido e reconfigurado após décadas ou séculos de imersões em multitarefas, na polivalência, nas duplas e triplas jornadas de trabalho e no espírito de ansiedade que nos envolve. Nosso inter-relacionar, interhabitar, parece encarnado no “povo mercadoria”, cada vez mais sem território (externo e interno) e, logo, sem corpo e sem espírito, que adoece com o planeta, porque é planeta, é “parente”: “Nos descolamos do corpo da Terra” (Krenak, 2020 b, p.1).
A rede-técnica-social – que sempre teve a característica de não ser assim tão dócil aos nossos comandos racionais principalmente no que diz respeito a separação espaçotempo nesses tempos pandêmicos diluiu ainda mais o pessoal/privado, o “produtivo/reprodutivo” (Orozco, 2014; Marimon e Tait, 2019). E nos deixou exaustas na busca doméstico-virtualizada por ser menos infelizes. As ameaças dos vírus em nossas máquinas, os vírus em nossos corpos, a viralização de boatos que se entrelaçam com fatos e notícias. Como sair da lógica da guerra, como insistir vingar com a lógica da vida? – “salvar o algoritmo da vida” (Petit, 2020, p. 57) – sobreviver, conviver, coexistir com mais esse vírus como parte de nossa comunidade humanidade e não como inimigo externo (Svampa, 2020).
Mais uma vez o medo foi eficientemente, transformado em mercadorias, em consumo mediado diário de tentativas de normalidade, o tempo de vida que “colateralmente” produzia mais e mais um conjunto de dados que geramos e nos geram. Se o “distanciamento social” ou “distanciamento físico” foi e é ainda é a medida necessária para impedir o contágio pelo vírus, o contágio e espraiamento da “monocultura da mente” e “monocultura da vida” (Shiva, 2004 e 2007) segue seu caminho por cabos, fios, antenas, que terminam nas famílias-telas e ao familiar e no afetivo contato dos dedos. Como sabemos, se as monoculturas nunca conseguiram aniquilar as diversidades das culturas, a sua maior potência como “erva-capital” é ampliar-se, reproduzir-se de forma rápida pelo controle e capacidade de conquistar ou colonizar corpos-territórios
No capitaloceno e já antes, existem classificações que sustentam as relações sociais, políticas e econômicas. E a partir das quais de delimitam corpos e corpos, gentes e não gentes, nas palavras de Butler (2020), existem as vidas que são passíveis de luto e consideradas humanas, enquanto outras, são submetidas a violência constante e a uma “injustiça radical”, que só poderia ser cessada com uma luta pela “igualdade radical” implicada com “uma crítica vigorosa ao capitalismo” e com o estabelecimento de laços mais fortes de solidariedade internacional.
Os processos produtores de injustiças ficam mais evidentes em sociedades onde as desigualdades (em suas várias dimensões que incluem gênero e raça/etnia) são mais agudas, como a brasileira. São muitos e muitas, humanos e não humanos, os não passíveis de vida e morte e suscetíveis a todo tipo de predação e “epistemicídios” pelo uso de uma “razão indolente” (Santos, 2000 e 2018). Enquanto uns poucos entram na seleta sociedade da humanidade (Silva, 2020; Arruzza, Fraser, Bhattacharya, 2019).
Como nos coloca Krenak, mesmo formando hoje uma humanidade complexa e plural (Krenak, 2020 b) estamos “vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos” provocando um “descolocamento da humanidade desse organismo que é a Terra” (Krenak, 2020a, s/p).
A pandemia também colocou ainda mais luz nas fragilidades de nossas democracias em gestar e implantar políticas mais adequadas para o cuidado comum, para a manutenção da vida e sintonizadas com as noções de interdependência e ecodependência entre humanos-natureza, entre nações e povos. Os olhares a partir de várias lentes feministas vão justamente afrontar esses falsos, porém “eficientes”, dilemas moldados pelas dicotomias como economia/produção X reprodução/cuidado. Noções que mesmo não condizentes com a materialidade das relações da vida, ainda continuam sendo legitimados e determinam normas e estruturas sociais, inclusive aquelas relativas ao funcionamento da ciência (Orozco, 2014; Herrero, 2014; Di Cesare, 2020).
O “vírus soberano” nos colocou de forma quase inescapável frente aos limites e as ciladas de uma “democracia imunitária”, com eminente potencial de acirrar preconceitos, racismos e controles tendo como justificativa a “fobia do contágio”. Os novos elementos e relações pandêmicas que interpelaram os governos democráticos, segundo Di Cesare encontraram inicialmente pouca resistência e um “déficit de criticidade” aos modelos de democracia, enfocados em ações de defesa ou melhoria dos regimes democráticos e ainda muito nutridos por discursos de fechamento e de medo ao externo (Di Cesare, 2020).
No meio, a pausa e a lentidão…o impulso ao autoconhecimento – entender quem somos e porque estamos aqui. O nosso propósito-semente, ainda latente, que encontra dificuldade em emergir. O doméstico e o privado, o “reprodutivo”, podem trazer chaves para ampliar uma sensibilidade e amorosidade biocêntricas?
O espaço doméstico, locus do exercício do isolamento social, também foi para mim e pode ter sido para muitas, um lugar de prática autoconsciente da interdependência, do cuidado comum e do autocuidado, de permitir-se dentro da caixinha da casa, pensar fora da caixinha. A casa e o corpo não possuíram como única possibilidade nesses tempos pandêmicos a de serem metáforas de aprisionamento, de uma interpelação involuntária do íntimo e do afetivo pelo regramento e a vigilância do escritório, do trabalho mercantilizado, do home-office…
Ah…a casa, o doméstico, nos fere o pensar feminista ao lembrar, sempre foi e será um espaço fundamental para regeneração de nossa energia vital. De muitos trabalhos e aprendizados, de inter-relações, dos cuidados, dos afetos, enfim, de recomposição física e psíquica e de construção cotidiana da intimidade com os parentes (sejam ou não humanos). A casa também é “tomada” de violências e opressões, física, psíquicas, unidas e intimas, que se esgueiram entre paredes que deveriam ser de abrigo e afeto. O tempo-espaço e o corpo também são lugares da relação e percepção íntima do limite das capacidades regenerativas de nosso planeta.
Antes da crise sanitária/pandêmica, já vivíamos globalmente uma crise
multidimensional – ambiental, social, política, econômica, climática – “civilizatória”. Do ponto de vista ecológico, o acelerado processo de extinção de espécies, em combinação com o esgotamento de recursos naturais e a intensificação das mudanças climáticas. Do ponto de vista social, presenciamos o aprofundando das mais diversas desigualdades: socioeconômicas, raciais, de gênero. Temos vivenciado uma ameaça real de aniquilação das bases da própria vida na Terra. Esse momento é definido por algumas vertentes feministas como uma crise civilizatória gerada pelo acirramento do conflito “capital-vida” (Herrero, 2014 e Orozco, 2014).
A crise é perpetuada por um modelo de pensamento ocidental, construído sobre alicerces patriarcais, antropocêntricos e capitalistas, que promovem e ampliam, nas palavras da indiana Vandana Shiva, formas de “mau desenvolvimento”, potencializadoras de processos de privatização da vida e de biopirataria (Marimon e Tait, 2019). A ciência quando veste o “reducionismo científico” e contribui para as “monoculturas da mente”. As principais “ordens” que formam o reducionismo científico segundo Shiva (2001, p.52) nos dão algumas pistas importantes da formação de uma razão em crise… 1) o especismo/antropocentrismo (espécie humana como centro e outras espécies apenas valor instrumental); 2) o reducionismo genético (explicação do funcionamento de todos os organismos biológicos a partir dos genes); 3) o reducionismo cultural (desvaloriza os conhecimentos e sistemas éticos que não se enquadram nesta racionalidade particular).
As classificações estão na base da naturalização da dominação de homens sobre as mulheres e entre humanos-natureza e também da mente racista, colonial e elitista que torna as mulheres negras, indígenas e pobres e do Sul, as primeiras e mais agudamente atingidas pela degradação socioambiental (Plumwood, 1993; Gebara, 1997). A economia feminista nos trouxe a crítica a lógica econômica que “funciona sem limites ecológicos, se definindo falsamente como autônoma tanto em termos ecológicos quanto humanos” (Bosch et al. 2003). Tanto a economia feminista, quanto o ecofeminismo questionam o reducionismo e tendências biocidas das teorias sobre o desenvolvimento econômicas mais amplamente adotadas …
É possível o “povo da mercadoria” aprender a
colocar sua “cabeça na terra”?
No início de “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), Airton Krenak nos explica o significado de povo Krenak como aquele que “tem a cabeça na terra”, uma relação inseparável entre seu povo e o que chamamos de natureza. David Kopenawa também inicia em “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” (2015) nos contando sobre seu povo e seus sonhos e uma visão sobre uma necessária transmutação dos sonhos-vida do “povo da mercadoria”, nós (“napë”para os yanomami), que ainda que em nossa diversidade, nos separamos dos mundos e causamos destruição do mundo e nós mesmos, enfermidades e pandemias.
Nas últimas décadas em nossa América Latina várias correntes de pensamento nos trouxeram a necessidade de ressignificação ou mesmo de superação de noções e políticas de “desenvolvimento”. Estabeleceram essas críticas sobre uma forte influência e diálogo com as cosmovisões e as práxis coletivas nos territórios e povos tradicionais e originários. Em termos teóricos ganharam espaço as discussões em terno do “giro ecoterritorial”, “pós-extrativismo” e do “buen vivir” (Svampa, 2016 e Acosta, 2016a; Acosta, 2016b; Gudynas, 2016). O pós-extrativismo busca trazer elementos para a superação de paradigmas primário-exportadores e extrativistas geradores de conflitos socioambientais e destruição da natureza. Para o princípio do “buen vivir” a natureza integra a comunidade e a cultura, definindo a natureza como um “ente” que integra o campo moral, ético e dos direitos. Essas ideias estabelecem formas distintas, mas também complementares, de retomada do tema das violências e dos horizontes históricos do colonialismo na América Latina a partir de uma perspectiva ambientalista que dialoga e privilegia as matrizes indígenas, comunitárias e feministas de nosso continente. Esse campo amplo de reflexões ressalta a necessidade de entendimento dos sentidos mais profundos de diferentes povos sobre a relação deles com o território, a natureza, a vida em comunidade – que transformam ou rejeitam totalmente a noção de desenvolvimento e remodelam a noção de “bem viver”.
A diversidade, a ecologia, os multiversos de cosmologias de povos originários, sempre disseram respeito a dimensão do insistir na potência da vida numa comunidade de diversos-complementares, nas quais plantas, terra, gentes se querem parentes e criam relações de domesticidade, de coabitar.
A “queda do céu” narrada por David Kopenawa e Bruce Albert submerge no entendimento do desequilíbrio entre corpos-territórios-espíritos pode ser causadora e causada por grandes epidemias (“xawara”) na cosmovisão yanomami: “os brancos chamam essas coisas de ecologia! Nós falamos de urihi a, a terra-floresta, e também dos xapiri, pois sem eles, sem ecologia, a terra esquenta e permite que epidemias e seres maléficos se aproximem de nós” (Kopenawa, Albert, 2015, p. 480). Pandemias, como a que hoje vivenciamos juntos brancos e diversos outros povos originários, são percebidas segundo a lógica yanomami como fenômenos emergenciais causados pelo rompimento dos equilíbrios sutis e frágeis do que chamamos de natureza, terra, ecossistemas. O nosso povo, que tem “fome de metais e mercadorias”, “comedores de terra floresta”, trazem a poluição, o desequilíbrio, as pandemias (Silva, 2020).
O gerar proximidade e compreensão-junto caracterizam a domesticidade para vários povos ameríndios que possuem noções que aparentam a domesticidade como uma dimensão fundamental do equilíbrio entre comunidades humanas e não humanas, equilíbrio que caracteriza o “buen vivir”. Para os quéchuas que habitam o TI do Parque de la Papa no Vale Sagrado do Peru, uma das três comunidades que formam seu sistema de vida “Ayllu”, cujo o equilíbrio dinâmico gera a vida boa e harmônica (“bem viver”), é a comunidade dos “domésticos”, que são plantas, animais, água, que foram de alguma forma transformados pela relação direta com os humanos, por exemplo, a parte de um rio que teve parte de seu curso modificada para chegar mais próximo de uma comunidade ou área de cultivo é “água domesticada”, uma espécie de batata plantada por gerações, cuidada e cuja sementes foram selecionadas, é uma batata domesticada. Essa comunidade é diferente de uma outra comunidade de seres que se matem (e devem ser mantidos) selvagens, sem que os humanos promovam uma aproximação e interação que transforme sua essência, embora sejam também parte do Ayllu e, portanto, estejam constantemente interagindo com as pessoas (Tait e Gitahy, 2019).
A domesticidade parece se manifestar como uma forma de estabelecer relações mais próximas com os entes e seres, de traze-los para um círculo, uma comunidade mais próxima, embora, uma grande montanha também esteja próxima, como parte de uma outra comunidade e com ela se estabelecem outras relações. A domesticidade se manifesta proliferando culturas e vida.
O povo Xucuru, que habita o território Ororubá no estado de Pernambuco, se considera um “povo-semente”, que se origina de antepassados que resistiram, morreram e foram plantados (não sepultados). Os Xucurus se entendem a partir de uma noção de bem viver em que esse povo semente entende a terra como um ser e ao mesmo tempo parte de sua comunidade, mas com dignidade própria, por isso buscam interagir com “cultura de sutiliza” e uma “cultura do encantamento”, que envolve o cultivo da intimidade, da domesticidade entre todos seres que habitam seu território. Entendem os sinais da natureza, que são na verdade os seus sinais, parte se sua comunicação, porque os xucurus também são natureza. Desse entendimento parte uma ética profunda, encarnada, para a qual todas as suas relações estão voltadas a “devolver a terra para a terra” de agriculturas como modos de vida para qual a diversidade de todas as formas e manifestações e primordial. Não há espaço, porque não há mente que projete a monocultura. O sistema tradicional agrícola é também um sistema tradicional de cura, terra-corpo-espírito buscam ser vistos e tratados em suas sutilizas e interdependência (informações obtidas a partir do depoimento em aula aberta ministrada em novembro de 2020 de maneira virtual por Iran Neves Ordonio, da Associação Indígena Xukuru do Ororubá).
O corpo, o cuidado a cura (“sanación”) e a relação indissociável com a terra, os territórios, a natureza fazem parte dos enraizamentos do feminismo comunitário indígena que apresenta formas próprias de teorizar, ricas em metáforas que partem das cosmovisões comunitárias nascidas em diferentes territórios latino-americanos. As suas cosmologias, epistemologias e histórias coletivas e pessoais, que delineiam estes feminismos, vem sendo narradas e escritas por elas próprias, como em publicações de coletivos de mulheres indígenas e de autoras como Lorena Cabnal, feminista comunitária maya xinca da Guatemala.
Segundo Lorena, quando as mulheres indígenas começaram a falar sobre a construir suas reflexões em torno à defesa do território, corpo e terra, o primeiro passo foi reconhecer que o corpo das mulheres foi expropriado historicamente, por isso é primordial para as feministas comunitárias recuperar este primeiro território de energia vital. Para que essa relação seja boa e harmônica tanto corpos como territórios precisam estar saudáveis e serem muitas vezes “sanados” pelas próprias mulheres e suas comunidades (Cabnal, 2010).
O corpo é um espaço tão próprio quanto o território para constituição da mulher indígena e relaciona-se com a espiritualidade indígena que implica a unidade entre tudo (água, terra, ar, bem-estar, liberdade, espiritualidade, comunidade). Os patriarcados (colonial e originário) são vistos pelo feminismo comunitário como uma ideologia que afetou e continua afetando profundamente o corpo-território das indígenas porque menospreza o feminino e justifica diversos níveis e formas de violência. A necessidade de avançar com a luta pela “despatriarcalización” é entendida como parte da recuperação da terra e do território porque “as violências históricas e opressões existem tanto paras meu primeiro território, o corpo, como também para meu território histórico, a terra” (Cabnal, 2010, p. 23; Gargallo, 2014, p. 168).
Ao final, que seja de novo antigo e não normal…
Sem a cura diária no doméstico-comum-comunitário que habitamos, todo o resto adoece. Essa foi para mim a experiência/revelação mais significativa deste período de pandemia e que deixará marca em nossos corpos-mentes-espíritos.
Transformar a essência das ações e sonhos do povo da mercadoria
Reaprender que a ação só tem efeito benéfico quando é feita de forma desinteressada,
com o princípio do amor
Colocar a cabeça e coração na terra, sustentar e cuidar a vida
Descanso, regeneração, criação: voltar a sonhar novos sonhos comuns
Corpo, terra, espírito
Proliferar culturas regenerativas
Juntos adiaremos o fim do mundo
Junto arvoreceremos[1].
“O futuro tem coração antigo”.
Referências
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[1] Remete a outro projeto coletivo que comecei a integrar durante a pandemia como “polinizadora” – o “Arvorecer” (https://arvorecercasa.wixsite.com/arvoreceremcasa). Uma iniciativa concebida e iniciada por coletivos e grupos de pesquisa durante a pandemia em 2020. Pretende criar uma atmosfera de afeto e alegria, de estudo e movimento, de liberdade e solidariedade fazendo nascer pelas vias digitais uma floresta de escritas, vídeos, fotografias, desenhos, bordados, músicas, germinando novos modos de habitar, cuidar de si, dos outros e com os outros.