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    sanación: pensamentos domésticos-filosóficos em tempos pandêmicos (ano 1)

    Márcia Tait, dezembro 2020.

    No início, o contágio…e muitas perguntas e perplexidade

    “Yvará pypyte
    apyka apu’a i,
    pytú yma mbyte re
    aguero-jera”

    “do Vazio Inicial/enraizou seu florescer”

    (Kaka Werá Jecupé no livro Tupã Tenondé: a criação do universo da terra e do homem segundo a tradição Guaraní)

    Respiração, inspiração, expiração: o dentro, o fora, o holograma: respirar, acalmar e curar.Contagiar…será que não é mais um momento do processo? …resinificando palavras como luta, resistência e utopia, para afetar-se, cuidar-se, este é o sentido de contagiar?

    As nossas humanas interferências sobre o mundo, as nossas ações inconscientes que levaram a uma crise civilizatória, ao umbral do precipício do antropoceno-capitaloceno (Barcelos, 2019), o ápice da agressividade e avidez humana metamorfoseada no “povo da mercadoria”. As origens profundas podem estar no medo, antítese do amor, e em necessidades profundas não atendidas? Como pensar-sentir-agir proliferando outros mundos e uma intersecção fecunda entre mundos? Fora da compulsão por agir, do impulso do medo. Como pensar ação pela não ação, a resistência, pela recuperação e regeneração (Baba, 2016; Rosenberg, 2006; Bruce e Kopenawa, 2015).

    “Comparo os desafios ou obstáculos a lugares de parada na jornada da alma em evolução. A viagem é longa e muitas vezes nos sentimos cansados (…) Às vezes precisamos parar e nos alimentar (…)” (Baba, 2016, p. 21). Por um tempo que não sei precisar, mas que extrapola esta vida minha, fundamentalmente vivemos desabitando nossas casas e corpos. “O mundo não pode parar. E o mundo parou”, assinala o intelectual indígena, povo medicina, Ailton Krenak (2020, p. 5).

    A pandemia permitiu a alguns, como no meu caso, preciosas oportunidades de reabitar, reencarnar ou, como dizem as feministas comunitárias “acorparse” e “sanarse” (Cabnal, 2018). O tempo, como entidade fundamental de percepção humana, não parou, para alguns está mais acelerado, para outros mais lento, outres até dizem “congelado”, em suspensão… tempo ganho, tempo perdido, “temos nosso próprio tempo”? O tempo, porém, é encarnado, sendo a noção de espaço, também raiz de nossas vivências e percepções, o “corpo-território” (Tait e Gitahy 2019, Cabnal, 2010) é onde os tempos vivem.

    Os tempos que preenchem o habitar e que vimos transformar-se, via processos quase mágicos de virtualização, em mais tempos-de-tempos, que “olvidam espaços” e materialidades já não tão possíveis. O tempo e o habitar ganham outros (não) contornos ambíguos de liberdade-aprisionamento que passaram a nos acompanhar cotidianamente nos meses de império do doméstico, da domesticidade pandêmica.

    Foto – Márcia Tait: Casa-Céu – O doméstico necessita fuga?

    Ah, o tempo pandêmico…A domesticidade como ócio e fruição, aquele ideal de ter finalmente mais tempo para aproveitar em mil atividades remotas disponíveis, logo descambou…O ócio já não tinha sentido, já não ressoava em nosso corpo-mente, como um dia num passado ou devir humano pode ter ressoado. Esse descansar comum, dimensão básica de “buen vivir”, parece que de alguma forma, de tanto não ser mais sentido — perdeu o sentido, precisa ser reaprendido e reconfigurado após décadas ou séculos de imersões em multitarefas, na polivalência, nas duplas e triplas jornadas de trabalho e no espírito de ansiedade que nos envolve. Nosso inter-relacionar, interhabitar, parece encarnado no “povo mercadoria”, cada vez mais sem território (externo e interno) e, logo, sem corpo e sem espírito, que adoece com o planeta, porque é planeta, é “parente”: “Nos descolamos do corpo da Terra” (Krenak, 2020 b, p.1).

    Foto – Márcia Tait – Universo no grão de areia: eu sustento a joaninha ou ela me sustenta?

    A rede-técnica-social – que sempre teve a característica de não ser assim tão dócil aos nossos comandos racionais principalmente no que diz respeito a separação espaçotempo nesses tempos pandêmicos diluiu ainda mais o pessoal/privado, o “produtivo/reprodutivo” (Orozco, 2014; Marimon e Tait, 2019). E nos deixou exaustas na busca doméstico-virtualizada por ser menos infelizes. As ameaças dos vírus em nossas máquinas, os vírus em nossos corpos, a viralização de boatos que se entrelaçam com fatos e notícias. Como sair da lógica da guerra, como insistir vingar com a lógica da vida? – “salvar o algoritmo da vida” (Petit, 2020, p. 57) – sobreviver, conviver, coexistir com mais esse vírus como parte de nossa comunidade humanidade e não como inimigo externo (Svampa, 2020).

    Mais uma vez o medo foi eficientemente, transformado em mercadorias, em consumo mediado diário de tentativas de normalidade, o tempo de vida que “colateralmente” produzia mais e mais um conjunto de dados que geramos e nos geram. Se o “distanciamento social” ou “distanciamento físico” foi e é ainda é a medida necessária para impedir o contágio pelo vírus, o contágio e espraiamento da “monocultura da mente” e “monocultura da vida” (Shiva, 2004 e 2007) segue seu caminho por cabos, fios, antenas, que terminam nas famílias-telas e ao familiar e no afetivo contato dos dedos. Como sabemos, se as monoculturas nunca conseguiram aniquilar as diversidades das culturas, a sua maior potência como “erva-capital” é ampliar-se, reproduzir-se de forma rápida pelo controle e capacidade de conquistar ou colonizar corpos-territórios

    No capitaloceno e já antes, existem classificações que sustentam as relações sociais, políticas e econômicas. E a partir das quais de delimitam corpos e corpos, gentes e não gentes, nas palavras de Butler (2020), existem as vidas que são passíveis de luto e consideradas humanas, enquanto outras, são submetidas a violência constante e a uma “injustiça radical”, que só poderia ser cessada com uma luta pela “igualdade radical” implicada com “uma crítica vigorosa ao capitalismo” e com o estabelecimento de laços mais fortes de solidariedade internacional.

    Os processos produtores de injustiças ficam mais evidentes em sociedades onde as desigualdades (em suas várias dimensões que incluem gênero e raça/etnia) são mais agudas, como a brasileira. São muitos e muitas, humanos e não humanos, os não passíveis de vida e morte e suscetíveis a todo tipo de predação e “epistemicídios” pelo uso de uma “razão indolente” (Santos, 2000 e 2018). Enquanto uns poucos entram na seleta sociedade da humanidade (Silva, 2020; Arruzza, Fraser, Bhattacharya, 2019).

    Como nos coloca Krenak, mesmo formando hoje uma humanidade complexa e plural (Krenak, 2020 b) estamos “vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos” provocando um “descolocamento da humanidade desse organismo que é a Terra” (Krenak, 2020a, s/p).

    A pandemia também colocou ainda mais luz nas fragilidades de nossas democracias em gestar e implantar políticas mais adequadas para o cuidado comum, para a manutenção da vida e sintonizadas com as noções de interdependência e ecodependência entre humanos-natureza, entre nações e povos. Os olhares a partir de várias lentes feministas vão justamente afrontar esses falsos, porém “eficientes”, dilemas moldados pelas dicotomias como economia/produção X reprodução/cuidado. Noções que mesmo não condizentes com a materialidade das relações da vida, ainda continuam sendo legitimados e determinam normas e estruturas sociais, inclusive aquelas relativas ao funcionamento da ciência (Orozco, 2014; Herrero, 2014; Di Cesare, 2020).

    O “vírus soberano” nos colocou de forma quase inescapável frente aos limites e as ciladas de uma “democracia imunitária”, com eminente potencial de acirrar preconceitos, racismos e controles tendo como justificativa a “fobia do contágio”. Os novos elementos e relações pandêmicas que interpelaram os governos democráticos, segundo Di Cesare encontraram inicialmente pouca resistência e um “déficit de criticidade” aos modelos de democracia, enfocados em ações de defesa ou melhoria dos regimes democráticos e ainda muito nutridos por discursos de fechamento e de medo ao externo (Di Cesare, 2020).

    No meio, a pausa e a lentidão…o impulso ao autoconhecimento – entender quem somos e porque estamos aqui. O nosso propósito-semente, ainda latente, que encontra dificuldade em emergir. O doméstico e o privado, o “reprodutivo”, podem trazer chaves para ampliar uma sensibilidade e amorosidade biocêntricas?

    O espaço doméstico, locus do exercício do isolamento social, também foi para mim e pode ter sido para muitas, um lugar de prática autoconsciente da interdependência, do cuidado comum e do autocuidado, de permitir-se dentro da caixinha da casa, pensar fora da caixinha. A casa e o corpo não possuíram como única possibilidade nesses tempos pandêmicos a de serem metáforas de aprisionamento, de uma interpelação involuntária do íntimo e do afetivo pelo regramento e a vigilância do escritório, do trabalho mercantilizado, do home-office…

    Ah…a casa, o doméstico, nos fere o pensar feminista ao lembrar, sempre foi e será um espaço fundamental para regeneração de nossa energia vital. De muitos trabalhos e aprendizados, de inter-relações, dos cuidados, dos afetos, enfim, de recomposição física e psíquica e de construção cotidiana da intimidade com os parentes (sejam ou não humanos). A casa também é “tomada” de violências e opressões, física, psíquicas, unidas e intimas, que se esgueiram entre paredes que deveriam ser de abrigo e afeto. O tempo-espaço e o corpo também são lugares da relação e percepção íntima do limite das capacidades regenerativas de nosso planeta.


    Papilla estelar (1958). Remédios Varo.

    Antes da crise sanitária/pandêmica, já vivíamos globalmente uma crise
    multidimensional – ambiental, social, política, econômica, climática – “civilizatória”. Do ponto de vista ecológico, o acelerado processo de extinção de espécies, em combinação com o esgotamento de recursos naturais e a intensificação das mudanças climáticas. Do ponto de vista social, presenciamos o aprofundando das mais diversas desigualdades: socioeconômicas, raciais, de gênero. Temos vivenciado uma ameaça real de aniquilação das bases da própria vida na Terra. Esse momento é definido por algumas vertentes feministas como uma crise civilizatória gerada pelo acirramento do conflito “capital-vida” (Herrero, 2014 e Orozco, 2014).

    A crise é perpetuada por um modelo de pensamento ocidental, construído sobre alicerces patriarcais, antropocêntricos e capitalistas, que promovem e ampliam, nas palavras da indiana Vandana Shiva, formas de “mau desenvolvimento”, potencializadoras de processos de privatização da vida e de biopirataria (Marimon e Tait, 2019). A ciência quando veste o “reducionismo científico” e contribui para as “monoculturas da mente”. As principais “ordens” que formam o reducionismo científico segundo Shiva (2001, p.52) nos dão algumas pistas importantes da formação de uma razão em crise… 1) o especismo/antropocentrismo (espécie humana como centro e outras espécies apenas valor instrumental); 2) o reducionismo genético (explicação do funcionamento de todos os organismos biológicos a partir dos genes); 3) o reducionismo cultural (desvaloriza os conhecimentos e sistemas éticos que não se enquadram nesta racionalidade particular).

    As classificações estão na base da naturalização da dominação de homens sobre as mulheres e entre humanos-natureza e também da mente racista, colonial e elitista que torna as mulheres negras, indígenas e pobres e do Sul, as primeiras e mais agudamente atingidas pela degradação socioambiental (Plumwood, 1993; Gebara, 1997). A economia feminista nos trouxe a crítica a lógica econômica que “funciona sem limites ecológicos, se definindo falsamente como autônoma tanto em termos ecológicos quanto humanos” (Bosch et al. 2003). Tanto a economia feminista, quanto o ecofeminismo questionam o reducionismo e tendências biocidas das teorias sobre o desenvolvimento econômicas mais amplamente adotadas …

    É possível o “povo da mercadoria” aprender a

    colocar sua “cabeça na terra”?

    No início de “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), Airton Krenak nos explica o significado de povo Krenak como aquele que “tem a cabeça na terra”, uma relação inseparável entre seu povo e o que chamamos de natureza. David Kopenawa também inicia em “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” (2015) nos contando sobre seu povo e seus sonhos e uma visão sobre uma necessária transmutação dos sonhos-vida do “povo da mercadoria”, nós (“napë”para os yanomami), que ainda que em nossa diversidade, nos separamos dos mundos e causamos destruição do mundo e nós mesmos, enfermidades e pandemias.


    Creación de las aves, 1957. Remedios Varo.

    Nas últimas décadas em nossa América Latina várias correntes de pensamento nos trouxeram a necessidade de ressignificação ou mesmo de superação de noções e políticas de “desenvolvimento”. Estabeleceram essas críticas sobre uma forte influência e diálogo com as cosmovisões e as práxis coletivas nos territórios e povos tradicionais e originários. Em termos teóricos ganharam espaço as discussões em terno do “giro ecoterritorial”, “pós-extrativismo” e do “buen vivir” (Svampa, 2016 e Acosta, 2016a; Acosta, 2016b; Gudynas, 2016). O pós-extrativismo busca trazer elementos para a superação de paradigmas primário-exportadores e extrativistas geradores de conflitos socioambientais e destruição da natureza. Para o princípio do “buen vivir” a natureza integra a comunidade e a cultura, definindo a natureza como um “ente” que integra o campo moral, ético e dos direitos. Essas ideias estabelecem formas distintas, mas também complementares, de retomada do tema das violências e dos horizontes históricos do colonialismo na América Latina a partir de uma perspectiva ambientalista que dialoga e privilegia as matrizes indígenas, comunitárias e feministas de nosso continente. Esse campo amplo de reflexões ressalta a necessidade de entendimento dos sentidos mais profundos de diferentes povos sobre a relação deles com o território, a natureza, a vida em comunidade – que transformam ou rejeitam totalmente a noção de desenvolvimento e remodelam a noção de “bem viver”.

    A diversidade, a ecologia, os multiversos de cosmologias de povos originários, sempre disseram respeito a dimensão do insistir na potência da vida numa comunidade de diversos-complementares, nas quais plantas, terra, gentes se querem parentes e criam relações de domesticidade, de coabitar.

    A “queda do céu” narrada por David Kopenawa e Bruce Albert submerge no entendimento do desequilíbrio entre corpos-territórios-espíritos pode ser causadora e causada por grandes epidemias (“xawara”) na cosmovisão yanomami: “os brancos chamam essas coisas de ecologia! Nós falamos de urihi a, a terra-floresta, e também dos xapiri, pois sem eles, sem ecologia, a terra esquenta e permite que epidemias e seres maléficos se aproximem de nós” (Kopenawa, Albert, 2015, p. 480). Pandemias, como a que hoje vivenciamos juntos brancos e diversos outros povos originários, são percebidas segundo a lógica yanomami como fenômenos emergenciais causados pelo rompimento dos equilíbrios sutis e frágeis do que chamamos de natureza, terra, ecossistemas. O nosso povo, que tem “fome de metais e mercadorias”, “comedores de terra floresta”, trazem a poluição, o desequilíbrio, as pandemias (Silva, 2020). 

    Foto – Márcia Tait – luminar, luar do quintal

    O gerar proximidade e compreensão-junto caracterizam a domesticidade para vários povos ameríndios que possuem noções que aparentam a domesticidade como uma dimensão fundamental do equilíbrio entre comunidades humanas e não humanas, equilíbrio que caracteriza o “buen vivir”. Para os quéchuas que habitam o TI do Parque de la Papa no Vale Sagrado do Peru, uma das três comunidades que formam seu sistema de vida “Ayllu”, cujo o equilíbrio dinâmico gera a vida boa e harmônica (“bem viver”), é a comunidade dos “domésticos”, que são plantas, animais, água, que foram de alguma forma transformados pela relação direta com os humanos, por exemplo, a parte de um rio que teve parte de seu curso modificada para chegar mais próximo de uma comunidade ou área de cultivo é “água domesticada”, uma espécie de batata plantada por gerações, cuidada e cuja sementes foram selecionadas, é uma batata domesticada. Essa comunidade é diferente de uma outra comunidade de seres que se matem (e devem ser mantidos) selvagens, sem que os humanos promovam uma aproximação e interação que transforme sua essência, embora sejam também parte do Ayllu e, portanto, estejam constantemente interagindo com as pessoas (Tait e Gitahy, 2019).

    A domesticidade parece se manifestar como uma forma de estabelecer relações mais próximas com os entes e seres, de traze-los para um círculo, uma comunidade mais próxima, embora, uma grande montanha também esteja próxima, como parte de uma outra comunidade e com ela se estabelecem outras relações. A domesticidade se manifesta proliferando culturas e vida.

    O povo Xucuru, que habita o território Ororubá no estado de Pernambuco, se considera um “povo-semente”, que se origina de antepassados que resistiram, morreram e foram plantados (não sepultados). Os Xucurus se entendem a partir de uma noção de bem viver em que esse povo semente entende a terra como um ser e ao mesmo tempo parte de sua comunidade, mas com dignidade própria, por isso buscam interagir com “cultura de sutiliza” e uma “cultura do encantamento”, que envolve o cultivo da intimidade, da domesticidade entre todos seres que habitam seu território. Entendem os sinais da natureza, que são na verdade os seus sinais, parte se sua comunicação, porque os xucurus também são natureza. Desse entendimento parte uma ética profunda, encarnada, para a qual todas as suas relações estão voltadas a “devolver a terra para a terra” de agriculturas como modos de vida para qual a diversidade de todas as formas e manifestações e primordial. Não há espaço, porque não há mente que projete a monocultura. O sistema tradicional agrícola é também um sistema tradicional de cura, terra-corpo-espírito buscam ser vistos e tratados em suas sutilizas e interdependência (informações obtidas a partir do depoimento em aula aberta ministrada em novembro de 2020 de maneira virtual por Iran Neves Ordonio, da Associação Indígena Xukuru do Ororubá).

    Foto Márcia Tait – parentes, espécies companheiras

    O corpo, o cuidado a cura (“sanación”) e a relação indissociável com a terra, os territórios, a natureza fazem parte dos enraizamentos do feminismo comunitário indígena que apresenta formas próprias de teorizar, ricas em metáforas que partem das cosmovisões comunitárias nascidas em diferentes territórios latino-americanos. As suas cosmologias, epistemologias e histórias coletivas e pessoais, que delineiam estes feminismos, vem sendo narradas e escritas por elas próprias, como em publicações de coletivos de mulheres indígenas e de autoras como Lorena Cabnal, feminista comunitária maya xinca da Guatemala.

    Segundo Lorena, quando as mulheres indígenas começaram a falar sobre a construir suas reflexões em torno à defesa do território, corpo e terra, o primeiro passo foi reconhecer que o corpo das mulheres foi expropriado historicamente, por isso é primordial para as feministas comunitárias recuperar este primeiro território de energia vital. Para que essa relação seja boa e harmônica tanto corpos como territórios precisam estar saudáveis e serem muitas vezes “sanados” pelas próprias mulheres e suas comunidades (Cabnal, 2010).

    Foto – Márcia Tait – Vertigens e Ecos do futuro: Vale Sagrado Peru

    O corpo é um espaço tão próprio quanto o território para constituição da mulher indígena e relaciona-se com a espiritualidade indígena que implica a unidade entre tudo (água, terra, ar, bem-estar, liberdade, espiritualidade, comunidade). Os patriarcados (colonial e originário) são vistos pelo feminismo comunitário como uma ideologia que afetou e continua afetando profundamente o corpo-território das indígenas porque menospreza o feminino e justifica diversos níveis e formas de violência. A necessidade de avançar com a luta pela “despatriarcalización” é entendida como parte da recuperação da terra e do território porque “as violências históricas e opressões existem tanto paras meu primeiro território, o corpo, como também para meu território histórico, a terra” (Cabnal, 2010, p. 23; Gargallo, 2014, p. 168).

    Ao final, que seja de novo antigo e não normal…

    Sem a cura diária no doméstico-comum-comunitário que habitamos, todo o resto adoece. Essa foi para mim a experiência/revelação mais significativa deste período de pandemia e que deixará marca em nossos corpos-mentes-espíritos.

    Transformar a essência das ações e sonhos do povo da mercadoria

    Reaprender que a ação só tem efeito benéfico quando é feita de forma desinteressada,

    com o princípio do amor

    Colocar a cabeça e coração na terra, sustentar e cuidar a vida

    Descanso, regeneração, criação: voltar a sonhar novos sonhos comuns

    Corpo, terra, espírito

    Proliferar culturas regenerativas

    Juntos adiaremos o fim do mundo

    Junto arvoreceremos[1].

    “O futuro tem coração antigo”.

    Oficina de Cerâmica Francisco Brennand, visitei em setembro de 2011, esta frase –
    “O futuro tem coração antigo” estava escrita no pátio externo e ecoa em mim desde então. Brennand esculpia muitos ovos, assim como figuras singulares de serpentes e pássaros. Assim encerro voltando ao início com o diálogo com os mitos de origens dos povos originários ameríndios e sua grande cobra. Foto de Divulgação do Acervo do Museu.
     

    Referências

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    ACOSTA, Alberto. Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Autonomia Literária: São Paulo, 264p, 2016a.

    ACOSTA, Alberto. Extrativismo e neo-extrativismo, duas faces de uma mesma maldição. In: Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Autonomia Literária e Elefante Editora, p. 46-85, 2016b.

    BABA, Sri Prem. Propósito: A coragem de ser quem somos. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2016.

    BARCELOS, Eduardo Alves da Silva. Antropoceno ou Capitaloceno: da simples disputa semântica à interpretação histórica da crise ecológica global. Revista Iberoamericana de Ecomomia Ecologica, v. 31. Edição Especial Congresso da Sociedade EcoEco, Campinas, 2019.

    BOSCH, A.; CARRASCO, C.; GRAU, E. Verde que te quiero violeta: encuentros y desencuentros entre feminismo y ecologismo, 2003.

    CABNAL, Lorena. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento

    epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala en

    Feminismos diversos: el feminismo comunitario, Acsur Las Segovias, Madrid, pp. 11-

    25, 2010.

    CABNAL, Lorena. TZK’AT, Red de Sanadoras Ancestrales del Feminismo Comunitario desde Iximulew-Guatemala. Ecopolítica. Janeiro de 2018. Disponível <https://www.ecologiapolitica.info/?p=10247>

    CARRASCO, Cristina. A 2003. Sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? In A produção do viver. Nalu, F.; Nobre M. (Orgs.). São Paulo: SOF, 2003, p.11-49.

    DI CESARE, Donatella. (2020). O vírus soberano: A pandemia coloca em questão a política do medo na democracia atual. Revista Piauí, acesso 10 abril 2020, <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-virus-soberano/>.

    GUDYNAS, E. 2016. Transições ao pós-extrativismo. In: Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Autonomia Literária e Elefante Editora, p. 174-212.

    HERRERO, Yayo. Economía ecológica y economía feminista: un dialogo necesario. In: Con voz propia: La economía feminista como apuesta teórica y política. Carrasco, C (Ed.). La Oveja Roja: Madrid, 2014.

    KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

    KRENAK, Airton. Ideias para adiar o fim do mudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

    KRENAK, Airton. Entrevista a Anna Ortega. A terra pode nos deixar para trás e seguir seu caminho. Portal UFRGS. Novembro de 2020. Disponível <https://www.ufrgs.br/jornal/ailton-krenak-a-terra-pode-nos-deixar-para-tras-e-seguir-o-seu-caminho/>.

    OROZCO, Pérez, Amaia. Subversión feminista de la economía. Aportes para un debate sobre el conflicto capital-vida. Madrid: Traficantes de Sueños, 2014. 

    MARIMON, Alessandra. TAIT, Lima, Márcia. Caminhos para a sustentabilidade da vida: revisão teórica e diálogo com as práticas demulheres coletoras da Rede de Sementes do Xingu. Otra Economia Revista Latinoamericana de Economía Social y Solidaria, v.12, p. 220-237, 2019.

    PETIT, Santiago López. El coronavirus como declaración de guerra. In: AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

    PLUMWOOD, Val. Feminism and the mastery of nature. Routledge: Londres, 1993.

    PRIMAVESI, Ana. Manual do solo vivo: solo sadio, planta sadia, ser humano sadio. São Paulo: Expressão Popular, 2016.  

    PAREDES, Julieta. Hilando Fino, desde el feminismo comunitario. Comunidad Mujeres

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    GARGALLO, Francesca. Feminismos desde Abya Yala: Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América. Cidade do México: Editorial Corte y Confección, 2014.

    ROSENBERG, Marshall. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

    SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Epistemologías del Sur. Coord. Maria Paula Meneses; Karina Andrea Bidaseca – 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Coimbra: Centro de Estudos Sociais – CES, 2018.

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    SILVA, Rafael Alfonso. O sonho curto dos napë e a pandemia. Campinas: Ed. do Autor, 2020.

    SHIVA, Vandana. Abrazar la vida. Madrid: Horas y Horas Editorial, 300 p, 2004.

    SHIVA, Vandana. Las nuevas guerras de la globalización: Semillas, agua y formas de vida. Madrid: Editorial Popular, 122 p, 2007.

    SVAMPA, Maristela. Estamos em uma crise em que o universo civilizatório está em disputa. Entrevista El Ciudadano, 5 de abril de 2020, traduzida e publicada 20 de abril no portal IHU.

    SVAMPA, Maristela. Las fronteras del neoextractivismo en America Latina. Conflictos

    socioambientales, giro ecoterritorial y nuevas dependências. México: Calas, 2019.

    SVAMPA, M. Extrativismo, neodesenvolvimentismo e movimentos sociais: Um giro ecoterritorial rumo a alternativas? In: Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Autonomia Literária e Elefante Editora, p. 140-171, 2016.

    TAIT, Lima, Márcia; GITAHY, Caira, Leda.Diálogos entre epistemologias feministas, princípio do bem viver e contribuições éticas e epistêmicas de ações coletivas latino-americanas. In: Anais XXXV Congresso Internacional da Associação de Estudos Latinoamericanos, 2017, Lima.

    TAIT, Lima, Márcia; GITAHY, Caira, Leda. Diálogos entre novos léxicos políticos e práticas comunitárias de cuidado em Abya Yala. Revista Climacom: Pesquisa, Jornalismo e Arte, v. 1, p. 1, 2019.

    TAIT, Lima, Márcia, FELTRIN, Rebeca, Buzzo; COSTA, Maria Conceição. Corpos e territórios: refletindo sobre biotecnologias, gênero, ambiente e saúde a partir de ações de mulheres do Sul. Em Construção: arquivos de epistemologia histórica e estudos de ciência, v. 5, p. 6-21, 2019.



    [1] Remete a outro projeto coletivo que comecei a integrar durante a pandemia como “polinizadora” – o “Arvorecer” (https://arvorecercasa.wixsite.com/arvoreceremcasa). Uma iniciativa concebida e iniciada por coletivos e grupos de pesquisa durante a pandemia em 2020. Pretende criar uma atmosfera de afeto e alegria, de estudo e movimento, de liberdade e solidariedade fazendo nascer pelas vias digitais uma floresta de escritas, vídeos, fotografias, desenhos, bordados, músicas, germinando novos modos de habitar, cuidar de si, dos outros e com os outros. 



    Documentário Marielle Vive 2019

    Marielle Vive! Um lugar de construção de humanidades

    Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes

    A proposta inicial para o documentário sobre acampamento Marielle Vive! era enfocar a questão das doações, a partir dos depoimentos de quem doa. A questão era mostrar não apenas a ação da sociedade, mas também quais eram as motivações.

    O acampamento, do Movimento Sem Terra (MST), está localizado no município de Valinhos (SP) e foi formado há pouco mais de um ano. “Foi no primeiro raiar do sol no dia 14 de abril de 2018, um mês após o assassinato de Marielle e Anderson, que mais de 700 famílias da região de Campinas (SP) romperam as cercas da Fazenda Eldorado Empreendimento Imobiliários Ltda., fazendo frente a especulação imobiliária e a improdutividade da terra” (MST, 2019).

    Atualmente, cerca de mil famílias vivem no local e transformam, a cada dia, a área que até então era improdutiva.


    Estivemos pela primeira vez no Marielle Vive! no dia 15 de maio, que era uma quarta-feira, dia em que teríamos aula, mas não tivemos devido às manifestações em defesa da Educação que ocorreram por todo o País. Participamos do Ato pela manhã, no Centro de Campinas, e depois fomos até o acampamento.

    Nosso primeiro contato foi como uma coordenadora geral que nos contou sobre a estrutura e organização do local, projetos, embates e dificuldades, como o difícil acesso à água e os entraves ao acesso a direitos básicos, como escola e atendimento no serviço público municipal de saúde. Caminhamos um pouco pelo local, conhecemos o funcionamento de alguns setores-chave, como Secretaria, Saúde, Cozinha e Almoxarifado. Naquele dia, estavam completando um ano, um mês e um dia de Marielle Vive!

    Voltamos ao acampamento mais duas vezes e tivemos a oportunidade de conversar com outro coordenador geral e com várias pessoas que ali vivem. Almoçamos na cozinha comunitária (uma delícia!) e nos deparamos com a diversidade da produção de hortas que todos @s acampad@s cultivam em volta de seus barracos (mesmo com toda a dificuldade de acesso à água e que foi parcialmente amenizada com o projeto de “subir a água” da mina, graças à implantação de um sistema com uma bomba, como mostramos no vídeo que produzimos). Também pudemos acompanhar parte dos preparativos para a festa junina que mobilizou a tod@s, a dificuldade de armazenar água, o resultado da oficina de bioconstrução com bambu, entre outros. Ações transformadoras.

    Desde o início contamos com a importante e gentil parceria do Carlos Filipe Tavares, que nos apresentou a tod@s no acampamento, acompanhou e registrou todas as visitas com sua Handycam, filmando tudo (inclusive a gente almoçando!).

    Apesar de termos uma ideia inicial para o documentário, não era algo fechado. Queríamos ouvir as demandas e o que seria interessante, para o acampamento, que fosse enfocado. Desde o início colocamos essa intenção e os caminhos apresentados foram diversos. Aliado a isso, a cada visita, novas descobertas para o grupo (era nosso primeiro contato com um acampamento do Movimento). A cada contato nos deparamos com novidades que estavam acontecendo no acampamento, novas histórias de vida. Para cada um de nós, o leque de temas possíveis foi se ampliando.

    Reuniões presenciais do grupo para discutir estrutura do roteiro, inclusive com professores sobre o andamento do trabalho, foram fundamentais para conseguirmos definir um fio condutor. E o tema com o qual passamos a trabalhar para a construção do nosso vídeo foi o que o acampamento Marielle Vive! representa e sua importância em termos de organização social e valorização do sentimento de coletivo, bem como de recuperação do meio ambiente e do fortalecimento das pessoas como indivíduos  políticos e transformadores de realidades. Como nos falou uma das coordenadoras do acampamento, mesmo com todas as dificuldades, “que aqui seja um lugar de construção de humanidades”.

    A experiência de conhecer o acampamento Marielle Vive! foi (é) incrível e a oportunidade, por meio deste curso, de vivenciar o desenvolvimento de um projeto audiovisual, extremamente desafiadora. Desde a busca de um tema, a pesquisa, planejamento de entrevistas e de captação de imagens, até tentar “rabiscar” um projeto, fazer decupagens, selecionar o que entra e o que sai (essa parte foi bem dolorida) e a questão técnica mesmo, como observar luz e ruídos do ambiente e um início de familiaridade com programas de edição.

    O balanço, sem dúvida alguma, é positivo. Tivemos, claro, as dificuldades de um trabalho em grupo, mas também a possibilidade de ouvir, de aprender com o outro e de desenvolver o desapego. Sem falar na alegria de ver as ideias tomando forma e a história contada nessa associação de imagens com sons, falas e silêncios.

    As ideias que cada um teve e direcionamento que cada um de nós queria dar, que acabaram não sendo incorporados neste projeto, não estão descartados. São sementes para novos projetos que nos sentimos motivados a desenvolver no Marielle Vive!

    Agradecemos à equipe do curso pela oportunidade de desenvolver este trabalho, a tod@s @s professor@s pelas aulas; à Kellen pelas orientações e ao Diego pela receptividade no Laboratório Terra Mãe e ensinamentos para ferramenta de edição.

    Um especial agradecimento ao Carlos, que abraçou projeto e grupo.

    À coordenação geral do acampamento e a tod@s acampad@s pelo acolhimento e horas dedicadas a nos apresentar o acampamento.

    Nosso muito obrigado!

    Diógenes Braga   Juliana Ribeiro   Telma Bodstein   Véronique Hourcade


    Todos direitos reservados.
    Curso Meio Ambiente, Questões Agrárias e Multimeios. Campinas, 2019.

    Fluxos: Água & Arte para tempos de sede

    “Fluxos – Água & Arte para tempos de sede” é uma produção audiovisual (produzida por uma equipe de realizadoras mulheres – ficha técnica ao final), que tem a água como eixo central e lança mão de variados elementos como dança, animação, poesia e depoimentos, aqui também com fluxo das vozes femininas. Partindo do contexto de pandemia, que evidencia as desigualdades no acesso à água, nos convida a ver além, apresentando a diversidade de significados que a água adquire para diferentes povos e culturas no Brasil.

    A realização do audiovisual foi apoiada pela Diretoria de Cultura da Unicamp e exibida no dia 08 de abril. Contou com a colaboração – através de depoimentos, poesias e inspirações – de diversos coletivos, movimentos e organizações de territórios de todas regiões do país, entre eles, dos Coletivos Sementeia e Arvorecer.

    “Rios voadores

    Que já nascem caminhando

    Sobreviverão ao estancamento de nossos diques

    De nossa ânsia pelo acumulo e represar?

    O princípio do homem branco pode ser mercadoria

    Das mulheres continua sendo água e (a)mar

    – vasto mar – metáfora do além

    – rio misterioso e conhecido – metáfora do lar.

    Como nunca precisamos de nascentes puras

    De esperançar, de voar com nuvens, esperadas nuvens e seu derramar

    Ah, as águas de março, “as águas que sempre estão por um fio”

    Viveremos, mais que sobreviver, transbordaremos…

    Ainda.”

    (Poesia Rios Voadores – Márcia Tait)


    O projeto também conta com um banco de imagens colaborativo sobre Águas, que já possui mais de 1300 fotografias.


    Ficha técnica

    Realizadoras: Carla Ladeira Pimentel Águas; Gabriela Marino Silva; Rosana Icassatti Corazza; Eimy Carolina Cubides Zuñiga; Erica da Cruz Novaes Gonçalves Dias; Giovana Roggeri Affonso; Marina da Silva Pires.

    Parcerias: Laboratório de Tecnologia e Transformações Sociais – LABTTS/IG/Unicamp; PUC Campinas; Instituto Opaoká.


    Por uma educação diferente: cursinho popular Lélia Gonzalez

    Colaboradores: Betânia de Lima, Julia Felice Incao e Rafael Baptistella

    A desigualdade social é uma questão central nos estudos sobre o Brasil. Abordada por diferentes correntes teóricas, a origem e as consequências desse problema foram interpretadas das mais variadas formas. Para Jessé Souza, o entendimento da desigualdade se dá pela ambiguidade da sociedade moderna: se apresentar como igualitária e justa, mas marcada por desigualdades e injustiças (SOUZA, 2011, p 388).

    A sociedade moderna, em nosso país e no mundo, se baseia em dois grandes princípios: a preservação da igualdade social (ou da dignidade) e das liberdades individuais (ou do expressivismo). Para o autor, esses princípios derivam da hegemonia das ideias liberais e geram uma dominação legítima e justa: o princípio meritocrático, grande naturalizador das desigualdades (SOUZA, 2011, p 389).

    É pensando na desigualdade que surge o cursinho Popular Lélia Gonzalez. Compreendendo o vestibular como um mecanismo que legitima a exclusão, o projeto social foi criado em 2016, na cidade de Campinas-SP, visando atender aqueles que não conseguem acessar colégios particulares e cursinhos privados para facilitar seu acesso à Universidade pública. Para compreender melhor sua gênese e seus objetivos, entrevistamos Armando Augusto Raphael e Vinícius André Costa, respectivamente fundador e atual coordenador do projeto.

    Começando pelo primeiro entrevistado, começamos com o professor Raphael, que é formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestrando em Sociologia também pela Unicamp, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Com uma ampla experiência como professor, já atuou em vários cursinho populares de Campinas e região, lecionando nas áreas de história, filosofia, sociologia, geopolítica e atualidades, além de estar a frente do projeto em questão, como fundador e coordenador, o Cursinho Popular Lélia Gonzalez.

    Como surgiu o cursinho popular Lélia Gonzalez e por que fundar um cursinho popular?

    O Lélia surge como uma consolidação de anos de observação de pessoas dentro da educação popular, que trabalham com a educação popular. No meu caso já havia 8 anos que eu trabalhava com esse tipo de modalidade de ensino e aí a gente começou a condensar os erros e os acertos e tentar montar um projeto fincado em praticamente em três pilastras principais: a pedagogia histórico-crítica, uma pedagogia da autonomia; o não-atrelamento ao Estado, entendido como aparelho da burguesia e também como uma força que atravessa várias pessoas, pessoas diferentes e que pelos seus próprios ordenamentos políticos acaba mudando o direcionamento dos projetos de educação popular que são atrelados a ele, depende de diretores e coordenadores de escolas e afins; e a autonomia docente, bem importante para nós, construir uma autonomia, de professores mesmo e não de voluntários. A evasão em cursinhos populares é bem alta e boa parte se dá pelo fato dos alunos não terem boas aulas ou ter aulas com pessoas que não estão comprometidas com esse tipo de coisa [educação popular]. O Lélia nasce nesse contexto, um contexto de consolidação. Em 2016, junto com alguns outros professores eu fundei o colégio e em 30 de maio de 2016 a gente fez nossa primeira turma e contava em torno de 20 alunos na manhã, uns 15 à tarde e uns 30 à noite.

    Como foi a escolha do nome do cursinho?

    Antes de fundar o Lélia, eu tive uma ideia de fazer um projeto com mais duas amigas que seria uma escola privada, que seria o cursinho Marighella, em 2010, 2011, e a gente pensou a princípio em trazer o nome do Marighella para o projeto, aí depois a gente pensou no Milton Santos, a ideia de um intelectual negro, aí veio uma terceira ideia veio depois que eu tive uma aula onde tive acesso aos textos Angela Davis, e fui apresentado a Lélia Gonzalez, então eu comecei a estudar um pouco a Lélia Gonzalez e aí eu comecei a estudar a idéia do ‘lugar de negro’, do livro dela que eu acho fantástico, e pensar esse lugar que a gente ‘exerce’ na sociedade como negro, e também trazer o nome de uma mulher, uma mulher negra, para dentro de um projeto de educação popular, o que praticamente não existia. Os nomes de homenageados são sempre de homens, a gente colocou o nome da Lélia, que representa um pouco o que a gente quer construir pelo espaço da questão da mulher e da questão racial. O nosso público na escola é majoritariamente feminino, em torno de 75% dos alunos são mulheres, então a gente cria mais ou menos nessa posição.

    Como é a demanda pelo cursinho? Qual é o público que procura vocês e estuda no cursinho?

    A demanda pelo cursinho foi mudando um pouco ano a ano, quando a gente pensa em demanda, pessoas que nos procuram. A princípio, no primeiro ano foi um projeto que foi divulgado em pouquíssimo tempo, em torno de quarenta dias, e havia em torno de 175 inscritos, e fizemos isso pela internet. Então o pessoal que nos procurava era o pessoal de renda baixa, de alguma classe média baixa e pessoas pobres, era mais ou menos nosso público de início em 2016. 

    Com o sucesso do projeto pedagógico, nossas turmas tiveram nos últimos dias de aula em torno de dezoito alunos, e desses dezoitos alunos a gente deve doze alunos que ingressaram de alguma forma em alguma universidade, e essas aprovações e as divulgações que a gente fez em relação às aprovações espalharam como um rastro de pólvora, então a gente conseguiu no ano de 2017, no segundo ano, mais de 500 inscrições. 

    Nessas 500 inscrições começaram a aparecer umas coisas mais heterodoxas, como pessoas muito pobres, de espaços periféricos, distantes do centro da cidade; pessoas de outras cidades da região: Hortolândia, Sumaré, a gente tem aluno de Cosmópolis. Nossa forma de seleção sempre foi quem chegou primeiro, até esse ano, porque 90% das pessoas eram de renda baixa. Não havia necessidade de muita burocracia para seleção. Em 2018 teve um ‘boom’ no Lélia, porque em 2017 tivemos cerca de 45 aprovações e isso gerou uma comoção, o nome da escola começou a ser muito falado. Os professores começaram a se juntar no projeto, já disse, como o processo da docência é um dos pilares da escola, professores muito bons, professores comprometidos, professores com renome na rede privada de ensino nessa lógica de cursinho, isso começou a atrair muita gente. 2018 foi um ano muito incrível, dos cento e poucos alunos que a gente tinha no fim do ano, aprovamos uns 75, uma média que supera todas as escolas da cidade em percentual de aprovação. 

    No ano de 2019, nós tivemos alguns problemas por conta disso, essa ideia de quem chega primeiro pega a vaga. 74% dos alunos eram de escola pública, ou seja, a gente abriu 26% para alunos de escolas privadas. Ou seja, mudou um pouco as características do cursinho: o cursinho começou a ficar mais branco, tivemos alguns disparates em questões de renda, de comportamento das pessoas. Dentro de um projeto de educação popular, eles estavam esperando e exigindo coisas que são vendidas pelos cursinhos comerciais. Agora no meio do ano, na turma do semi, começamos a fazer alguns critérios de seleção socioeconômicos e raciais: a gente faz uma inscrição geral, pela internet, mas dá preferência para pessoas que obedeçam determinados critérios: se são pessoas lgbts, questões de raça, gênero, renda, vamos decidindo na hora de acordo com as inscrições que vão aparecendo.

    Como é a relação do cursinho com a comunidade?

    A questão geográfica é uma coisa interessante. A questão da relação com a comunidade que tem a ver com a ocupação do espaço. A gente decidiu ir atrás de alguns lugares e o único que a gente achou foi em cima do bar da Marcinha, o (…) bar que fica na Glicério, na frente do Largo do Pará. E a princípio a gente achou esse lugar, porque era um lugar muito barato, muito em conta, a Dona Márcia fez para a gente um preço muito camarada, muito abaixo do valor de qualquer sala comercial que possa ser alugada ali na Glicério, e acabou sendo um espaço que acabou transcendendo a própria questão da escola em si. 

    Como funciona dentro de um bar, você circula ali, e é um bar numa localização central, então ali circula de pedinte a pessoas que estão indo pegar o ônibus para ir para Viracopos, enfim, executivos que param, tomam um café, conhecem a Dona Márcia a muito tempo, ela está ali a quase trinta anos naquele espaço e essa convivência junto com alunos começou a ter debates interessantes, até dentro do bar, e a gente passou por duas eleições, uma eleição municipal e uma eleição nacional durante o processo do (……) da escola, e foi muito interessante ver como uma escola pode ser construída, pode ser colocada em lugares que não necessariamente são travados, são tratados para a prática escolar. É muito legal porque a gente é uma escola em cima de um bar em uma das principais avenidas da cidade, provavelmente a avenida que têm mais agências bancárias e a gente é a única escola daquela região. 

    Então traz uma questão muito interessante com a comunidade: o pessoal que ali frequenta o bar da Dona Márcia sabe que tem uma escola, é um pessoal que perguntam as coisas, que ficam felizes quando a gente a gente coloca as aprovações e tudo mais… Então é um negócio que eu acho bem importante que acabou sendo colocado.

    O professor Armando Raphael deixa claro qual é a educação que o cursinho busca colocar em prática desde a sua idealização até o dia-a-dia dentro da sala de aula. Nesse projeto de educação, a escolha do nome do cursinho é um fator central, mas sim faz parte de uma pedagogia histórico-crítica que portanto reconhece gênero como “uma categoria útil para análise histórica” (SCOTT, 1995) e de fato colocar a questão da mulher e de raça como central no projeto do cursinho, como nos conta Raphael, que são preocupações do projeto. 

    Lélia Gonzalez, a homenageada com o nome do cursinho, foi uma intelectual e ativista do movimento negro no Brasil, fala em seus textos  que “desde a independência aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática político-social preocupados com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira” (GONZALEZ, 1984, p. 1), daí a importância e entender como é essencial que o cursinho se mantenha sem o Estado e crítico ao Estado, pois assim é possível criticar o racismo estrutural e colocar nas boas universidades pública quem, historicamente, não a frequenta.

    “É nesse sentido que o racismo, enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas, denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social.” (GONZALEZ, 1984, p. 3).

    Essa questão também foi abordada por Lila Schwarcz. Para a antropóloga, a escravidão no Brasil enraizou costumes e palavras. Com isso, a prática se torna mais do que um sistema social, mas algo que moldou condutas, desigualdades e tornou “raça” e “cor” como marcadores de diferenças. A escravidão criou uma “memória incorporada”, capaz de criar réguas de condutas sociais a partir da cor da pele (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p.92).

    Cabe lembrar também, que, se Lélia nos alerta sobre a desigualdade na sociedade brasileira e qual é lugar da população negra historicamente em seu livro, citado por Raphael, “Lugar de Negro” (GONZALEZ, 1982). Apesar de uma estrutura social racista, essas pessoas se destacam em diversas áreas e o projeto desse cursinho tem a proposta de deixar isso evidente por reconhecer como a representatividade é importante para os 75% dos estudantes do cursinho, que são mulheres negras. Então, homenagear Lélia Gonzalez com o nome do cursinho e ainda homenagear nomes de Marielle Franco e Carolina de Jesus no nome de suas salas, é mostrar que nesse projeto a questão de gênero, raça e classe é central, assim como a questão da representatividade.

    Continuando com a próxima entrevista, conversamos também com o atual coordenador pedagógico Vinícius André, que tem experiências e atua como professor de Gramática, Redação e Literatura, e é graduando em letras pela Unicamp. O professor Vinícius nos conta sobre suas experiências a seguir.

    Por que participar de um cursinho popular?

    A gente sabe que o vestibular é um processo injusto e historicamente só alunos de boas escolas ou, na realidade, de escolas particulares têm chances de acessar a universidade. O cursinho popular luta justamente contra isso: tenta democratizar o ensino superior colocando alunos e alunas sem condições financeiras nas universidades.

    Há também uma espécie de identificação por essa causa porque eu estudei minha vida inteira em escola pública e via que meus colegas não conseguiam acessar a universidade, que isso era um privilégio para um determinado grupo social, mais privilegiado. 

    Então participar de um cursinho popular é lutar para que pessoas sem oportunidade de pagar uma boa escola ou um bom cursinho consigam também estar no ensino superior.


    Quais têm sido os maiores desafios/dificuldades e as maiores gratificações da coordenação do Lélia?

    O maior desafio é lidar com os professores. São 80 voluntários, são muitos professores. Por exemplo: um precisa faltar, aí você tem que arrumar alguém para substituir, trocar horário, isso toma muito tempo. A maior dificuldade é coordenar um grupo tão grande de professores, seja pelas faltas, pelas questões pedagógicas de adequação do conteúdo que está sendo trabalhado. Outra coisa trabalhosa são os simulados, porque os professores mandam questões, mas a gente tem formatar, diagramar, isso toma um tempo também.

    A maior gratificação é pensar que o Lélia é provavelmente o maior cursinho popular da cidade. Tem o maior número de horários de aula, já que os populares geralmente possuem aulas só no período noturno ou aos sábados enquanto o Lélia tem manhã tarde e noite. E por ser um cursinho tão grande, tão conhecido, pelo grande número de aprovações, pela qualidade das aulas, com professores bem selecionados. Enfim, é o fato do cursinho estar dando certo, estar colocando bastante gente nas faculdades, me deixa muito feliz e mostra que o cursinho está valendo a pena. 

    Como tem sido a resposta dos alunos (feedback) sobre o cursinho, aulas, professores?

    É o melhor possível. Os alunos se identificam com o cursinho, gostam dos professores, ficam estudando no contra-turno, vão nas aulas extras de sábado. A limpeza é responsabilidade deles, inclusive. Eles cuidam do cursinho. 

    Como colocado por Armando Raphael ao apresentar os pilares fundacionais do cursinho, tais como, a pedagogia histórico-crítica e a pedagogia da autonomia, pretende-se não somente reproduzir-se a massificação conteudista dos cursinhos comerciais, mas também discutir e promover a reflexão dos alunos enquanto sujeitos inseridos dentro deste contexto social de múltiplas disparidades, nas quais, temos de um lado, indivíduos guarnecidos de todo um aparato social, político e econômico facilitando seu acesso à formação acadêmica que possibilitará a manutenção de boas condições de vida, possibilitados inicialmente por condições familiares de mesmo estrato e de outro, sujeitos desprovidos destas mesmas condições que figuram na sociedade como “sujeitos subalternos”.

    Para Spivak (SPIVAK, 2010, p.12), o termo “subalterno” não deve ser usado para todo e qualquer sujeito marginalizado, mas sim , deve se ater ao seu significado atribuído por Gramsci ao referir-se ao “proletariado”, ou seja àquele cuja voz não pode ser ouvida.

    O termo subalterno, para a autora , descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.

    Spivak coloca em voga, a questão da tentativa errônea de defesa dos sujeitos subalternos por sujeitos validados socialmente como intelectuais que julgam poder falar por meio do outro e, por meio dele , construir um discurso de resistência, reproduzindo desta forma, as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem que este se apresente com uma voz realmente sua e não uma versão “prefaciada” da interpretação daqueles que o estudam.

    O Cursinho assim, contribui para que os estudantes oriundos de classes de sujeitos subalternos, consigam  ingressar no meio acadêmico universitário, não apenas para garantir uma formação intelectualizada exógena, mas para a construção de uma nova intelectualidade baseada em saberes plurais, novos ou há muito ignorados ou desonestamente coibidos pela hegemonia classista dominante dos ambientes universitários, sobretudo os de grande prestígio social, tais como o da Universidade Pública. Ainda de acordo com (SOUZA, 2011, p. 15), a impressão amplamente difundida, seja pelos meios de comunicação que chegam ao público em geral, seja pelo debate político, acadêmico, de que os problemas políticos e sociais brasileiros conhecidos e “mapeados”, oriundos de um processo de desigualdade que se funda em um passado longínquo, cuja perenidade explicaria os processos de desigualdade atuais, estaria equivocada.

    A violência simbólica adquire traços modernos e características de perpetuação que se adequaram muito bem à narrativa quase que exclusivamente economicista da compleição social-econômica brasileira, na tentativa de elencá-las e justificá-las por meio da órbita racionalista em torno da entidade que se torna o “Mercado”.

    Dentro desta elíptica basicamente numérico-estatística que se apresenta de forma mais palatável ao seu público, invisibilizam-se de forma deliberada, os fatores não econômicos da desigualdade entre os indivíduos, tais como suas precondições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial entre estes, afastando-os de uma situação de equidade.

    Para Souza (2011, p. 18), o economicismo é a visão dominante também de todas as “pessoas comuns” no sentido de “não especialistas”, ou seja, das pessoas que não são “autorizadas”, pelo seu capital cultural e jargão técnico, a falar com autoridade sobre o mundo social.  É isso que faz do economicismo a ideologia dominante do mundo moderno.

    Neste sentido a “cegueira” da percepção economicista do mundo reside em não enxergar a transferência dos “valores imateriais” na reprodução das classes sociais e de seus privilégios no tempo. Esses valores imateriais apresentam-se tanto nas classes econômicas mais altas quanto nas classes médias, mas sendo nesta última a melhor visibilidade do fenômeno, pois os valores culturais que vão sendo agregados desde a infância através de relações de afetos , tais como ver aos pais descansando e lendo jornais na sala, assistindo à debates ou à conteúdos culturais por meio de assinatura de televisão paga, ao acesso às informações tecnológicas de forma lúdica através de jogos digitais entre familiares, membros da família que viajam frequentemente e que falam outros idiomas, acesso a novas culturas, enfim, construções que já pré-qualificam um determinado tipo de sujeito, cujo perfil apresenta  predileção por parte do Mercado para os cargos mais almejados, complementando quando lhes falta, a técnica, uma vez que suas estruturas culturais já estão embasadas e alinhadas aos “valores” empresariais.

    Desta forma, essa visão economicista “universaliza” os pressupostos da classe média para todas as “classes inferiores”, como se as condições de vida dessas classes fossem as mesmas. (SOUZA, 2011, p. 20).

    Dentro deste contexto de subalternidades e tendo-se em vista a diferenciação dos sujeitos perante a sociedade é que espaços como estes, de formação e introdução desses sujeito sociais marginalizados e excluídos dentro das esferas de formação do conhecimento e do arcabouço cultural, tornam-se tão fundamentais para a construção, de fato, de uma sociedade que alcance a equidade entre seus indivíduos.     

    A entrevista com o professor Vinícius retoma o ponto de partida – das desigualdades – com a adição de um dispositivo fundamental: o vestibular. Como pontuado pelo Coordenador do Projeto, o vestibular  é um processo injusto no qual historicamente só alunos de boas escolas ou, na realidade, de escolas particulares têm chances de acessar a universidade. Ainda relata de suas experiências pessoais como ex-aluno de escola pública, a percepção de que grande parte de seus colegas não conseguiam acessar a universidade pública, sendo esta restrita a determinado grupo social mais privilegiado. Entendido como um “processo injusto historicamente”, remete ao que Jessé Souza chamou de violência simbólica (SOUZA, 2011, p. 425). Para o sociólogo, os mecanismos de distinção social separam os que não tem (capital econômico) e os que não sabem (capital cultural) dos que têm e que sabem, a partir de práticas naturalizadas. Essas são enraizadas pelos indivíduos a partir de violências que aparecem suavizadas.

    A meritocracia associada à Modernidade coloca no indivíduo a responsabilidade pela sua própria exclusão, ou seja, coloca nos estudantes não privilegiados a culpa pelo seu fracasso nas provas de vestibular. Como depende unicamente do indivíduo, a violência se dissolve e a exclusão é reflexo das práticas, das vontades e das limitações dos próprios excluídos.

    Sintetizando, o vestibular possui uma face dual. Na interpretação de Foucault (SOUZA, 2011, p. 423), a sociedade moderna é marcada pela ilusão de liberdade. Essa ilusão se consolida na dualidade entre conteúdos manifestos e conteúdos latentes. Os primeiros são significados aparentes, ou seja, o vestibular visto enquanto mecanismo de seleção dos mais preparados, dos que conseguirão acompanhar os cursos a que se candidataram. O conteúdo latente, por sua vez, é o vestibular enquanto marcador de desigualdade, que separa os que podem dos que não podem. A relação entre os dois conteúdos é a manifestação da chamada violência simbólica. 

    Assim, o projeto social visa desmascarar a violência simbólica e enfrentar o vestibular como um marcador de diferença. O que os voluntários e fundadores buscam é enfraquecer a desigualdade moldada pelo vestibular, levando as práticas pedagógicas e técnicas de resolução restritas dos cursinhos privados para os indivíduos e grupos que não podem acessá-los. 

    Por uma educação diferente: Classe, gênero e raça no cursinho popular Lélia Gonzalez

    Realizadores: Betânia de Lima Ribeiro Almeida Freitas; Julia Felice Incao e Rafael Baptistella Panzarin dos Reis.


    **Trabalho final realizado para a disciplina  “GF402 – História Econômica , Política Social do Brasil ”, ministrada pela Profa. Márcia Tait, oferecida no Instituto de Geociências da Unicamp durante o segundo semestre de 2019.

    Referências bibliográficas:

    GONZALEZ, Lélia. “Lugar de Negro”. Editora Marco Zero Limitada, Rio de Janeiro, 1982.

    GONZALEZ, Lélia. “Mulher Negra”; 1984.

    SCHWARCZ. L; STARLING. H. “Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência” Brasil: uma biografia, 2015.

    SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, 1995. 

    SOUZA, J.. “A má fé da sociedade a naturalização da ralé”. In A ralé brasileira quem é e como vive, 2011.

    SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno Falar? Prefácio e Capítulo 1. Editora UFMG, 2010.

    Fonte das fotos e imagens: página oficial no Facebook do Cursinho Lélia Gonzalez: < https://www.facebook.com/cursinholelia/ > novembro de 2019.


    LIVE – Protagonismo das Mulheres Quilombolas

    Live 27/7 – 18h

    Divulgue, participe!
    Link de acesso para a roda de conversa:
    https://bit.ly/apaer-quilombolas

    Em comemoração ao Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha e ao Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, a Associação Paulista de Extensão Rural – APAER realizará uma Live com mulheres quilombolas. Elas debaterão sobre a participação e o protagonismo das mulheres quilombolas nas políticas públicas de desenvolvimento rural das quais as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira/SP são beneficiárias. Quais são suas percepções sobre essas políticas e o papel da mulher? O que poderia mudar no modo como essas políticas são realizadas? Quais outros desafios enfrentam as mulheres agricultoras quilombolas?
    Conhecer essas percepções e desafios é o objetivo da

    Live da Apaer no dia 27 de julho próximo, que tem o apoio do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista – FESBS, da Sempreviva Organização Feminista – SOF e do coletivo Sementeia.


    Abertas inscrições Curso “Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios” – edição 2020


    Abertas as inscrições para Disciplina
    (AP-545) e Curso de Extensão “Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios” – edição 2020 Abertas as inscrições para Disciplina e Curso de Extensão “Questões Agrárias, Ambiente e Multimeios” – edição 2020

    1o Semestre / 2020

    Professor Responsável: Profa. Dra. Vanilde Ferreira de Souza Esquerdo

    Professores Convidados: Profa. Dra. Aline Vieira de Carvalho, prof. Dr. Roberto Donato, prof. Dra. Mariana Duccini Junqueira da Silva.

    Colaboradores/Pesquisadores: Dr. Diego Riquelme,  Dra. Kellen Junqueira, Dr. Marcelo Pupo, Doutoranda. Janaína Welle, Dra. Márcia Maria Tait, Dra.Teresa Noll Trindade, Alessandro Poeta e Dra. Luciana Henrique da Silva

    Dia/Horário: quinta-feira 9h – 12h

    Local: Nepam/Unicamp

    Resumo/Objetivos: Proporcionar métodos e recursos técnicos e teóricos para a análise crítica da linguagem audiovisual e para a construção de narrativas audiovisuais. O programa privilegia questões relativas às narrativas e linguagem cinematográfica sobre o filme documentário, por meio da abordagem de conteúdos, realização de análises fílmicas e de exercícios práticos. As análises fílmicas e discussões realizadas durante o curso/disciplina serão baseadas em estratégias voltadas à produção coletiva sobre temas como movimentos sociais, cultura e política, meio ambiente e questões agrárias, promovendo também uma reflexão mais abrangente em torno de identidades coletivas populares e práticas audiovisuais engajadas.

    A abordagem adotada parte de uma concepção da práxis como fundamento para os processos pedagógicos, o que implica na incorporação das expectativas e trajetórias pessoais dos participantes. Por isto, propõem-se momentos de reflexão-ação durante todo curso/disciplina e a divisão em grupos para definição e o desenvolvimento de projetos de realização audiovisual. Os projetos deverão estar alinhados com o formato e temas abordados durante o período e as condições objetivas de tempo-realização, ou seja, serão esperadas propostas de projeto de documentário em curta-metragem, com foco nas relações entre meio ambiente e sociedade, questões agrárias, movimentos sociais do campo e da cidade e outras temáticas levantadas durante o curso/disciplina.

    Vagas: 20

    Inscrições: DAC ou Extecamp – Os interessados caso sejam estudantes de pós regulares da Unicamp deverão se inscrever pela DAC curso sigla AP545, os que tem graduação podem se inscrever como especiais. O curso é aberto a qualquer cidadão.

    Os que se inscreverão pelo curso de extensão deverão aguardar a entrada do curso no site da Extecamp – http://www.extecamp.unicamp.br/ – Procurando pelo curso FEG-0770.

    Solicitamos um curriculum resumido e uma manifestação de interesse para os e-mails: kellen.junqueira@gmail.com / caroca@unicamp.br. Nosso objetivo principal com esta solicitação é ter um perfil da turma, esperamos que o número de interessados esteja compatível com o nº de vagas. Para os que enviarem a mensagem podemos informar quando o curso estiver no site da Extecamp.

    Lançamento da Plataforma de Filmes Acervo Formiga e Web série

    Lançamento da Plataforma Pública de Filmes Acervo Formiga com a disponibilização da Web-Série: “Des(afetos).

    “Des(afetos) – A Composição das Emoções na Política Brasileira”
    Brasil (2019) – 47 min.

    Direção/Realização:  Coletivo de Mídia Livre Vai Jão e Kjetil Klette Boehler. Apoio: FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)CIEC/IFCH/UNICAMP (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre Cidades / Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade de Campinas). Brasil e Noruega – (2019) – Duração: 47 min
    Sinopse: Uma cartografia íntima que busca apontar as relações entre emoção e política no interior das manifestações pela disputa eleitoral no Brasil de 2018. O resultado traz a tona o imaginário afetivo e simbólico dos grupos sociais na efervescência dos últimos dias antes da decisão do novo Presidente da República. As polarizações de classe, raça, etnia, gênero e religiosidade captadas nas intensidades do momento propiciam uma leitura histórica de conflitos e contradições de uma tradição colonial ainda vigente no Brasil. Nesse cenário a disputa pela hegemonia de valores deflagram muito mais do que uma ética ou uma moral, mas sim, suas acomodações e interesses mais profundos.


    acervoformiga.png

    Lançamento da Plataforma Pública de Filmes Acervo Formiga com a disponibilização da Web-Série: “Des(afetos) – A Composição das Emoções na Política Brasileira” Brasil (2019) – 47 min.

    Aula Aberta em Agroecologia – Curso Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios/2019

    Inscrições Abertas – Curso Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios – 2019

    1º Semestre / 2019

    Professor Responsável: Profa. Dra.Sonia Bergamasco

    Professores Convidados: Profa.Dra. Aline Vieira de Carvalho e Prof. Dr. Gilberto Sobrinho

    Colaboradores/Pesquisadores: Dr. Diego Riquelme, Dra. Kellen Junqueira, Dr. Marcelo Pupo, Ms. Janaína Welle, Dra. Jennifer Jane Serra, Alessandro Poeta Soave, Dra. Luciana Henrique da Silva e Dra. Márcia Maria Tait

    Dia/Horário: quarta-feira 9h – 12h (início 27/2)

    Local: Nepam/Unicamp

    Vagas: 20

    Inscrições: DAC ou Extecamp – Os interessados caso sejam estudantes de pós regulares da Unicamp deverão se inscrever pela DAC, os que tem graduação podem se inscrever como especiais.

    Os que se inscreverão pelo curso de extensão deverão fazer sua matrícula de 10 a 17 de dezembro no site da Extecamp – http://www.extecamp.unicamp.br/ – Procurando pelo curso FEG-0770.

    Exibição das produções do curso Meio Ambiente, Questões Agrárias e Multimeios – 2018

    Este mês (24/05) teremos o momento de exibição das produções do curso de extensão e disciplina de pós-graduação “Meio Ambiente, Questões Agrárias e Multimeios”. Evento é aberto para todxs interessados e contará com participação das equipes produtoras dos documentários e convidados.

     

    Quando: Dia 24 de maio às 14h.

    Local: Anfiteatro do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP. 

    Do argumento à imagem-final